Olho-me ao espelho, ainda sou um corpo moderno a despeito da idade. Uma peça de carne que repete o molde consagrado desde que abandonamos a caverna. Não ofereço novidade. Apresento os mesmos dedos do pé, embora alguns de escassa eficácia.
Exibo igualmente a mesma anatomia das castelãs do século XII que, à guisa de prazer e predomínio social, permitiam aos trovadores, de passagem por seus domínios, acariciá-las, dando-lhes a ilusão fálica de serem titulares de seus bens.
Coexistem em mim, contudo, todas as mulheres do mundo. Cada qual apresentando indícios que pleiteiam reconhecimento, igualdade de condições. Trajadas de jeans, com feições contemporâneas, estas mulheres são uma espécie arcaica que guarda no armário da história memórias de um acervo inexplorado. Como se no âmago da sua genética armazenassem revelações de que não se sabiam capazes de esmiuçar, por lhes faltar a linguagem com que desvendar o próprio mistério.
Esta mulher contemporânea, que observo, estremece sob a pressão ds sentimentos. Seu corpo é um tratado geológico constituído de camadas que remontam à criação do mundo. Quem sabe terá ela vindo da Árgólida, destes tempos remotos, ao ser deixada à margem dos portões do paraíso. Privada assim de verbalizar aqueles dons que nos são próximos, bastando que se mire no espelho de água da lagoa Rodrigo de Freitas.
Tanto como elas, sou arcaica.Vivi outrora realidades sem haver dado nome adequado aos bois e às emoções. Em mim perduram resquícios evocativos que tardam em aflorar, em sussurrar quem sou.
Nélida Piñon
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