sábado, 18 de fevereiro de 2023

Estique, stick


Os cromos com jogadores da bola, sim, sobretudo, a euforia do hóquei em patins. Líamos as revistas. Sabíamos tudo. Não havia televisão. Ouvíamos os relatos e sofríamos contra a Espanha, a Itália, ou, às vezes a Argentina. O resto, mais coisa menos coisa, acabava por ser trigo limpo. 
O regime e os seus locutores armavam um tremendo alarido com estas vitórias, mas, lá em casa, longe estávamos do regime. Eu era muito novo para especificações, isso já se tornara claro para mim.
Jogar o hóquei é que era! Olho nos recintos cimentados e nos pátios das traseiras,não havia um que escapasse, às vezes contra a vontade (e a ira) dos proprietários. Os patins riscavam os azulejos do chão, as sticadas sobressaltavam o repouso do jornal em leitura.
Pesados patins de ferro, adaptá-los ao calçado, com uma chave metálica, era uma trabalheira. Equipamento caríssimo, imitações nacionais de estiques à venda, subdesenvolvidos, com uma zona de remate mínima. Os guarda-redes, agachados, lá se amanhavam com uma tábua de caixote entre quatro tijolos.
"Estique"... Tenho dificuldade em escrever esta palavra, assim à portuguesa, embora conceda que é como deve ser.
Mas aquela magnífica peça de um primo meu, harmoniosamente torneada, de bom tamanho, elegância fidalga, respondendo com precisão às mãos e braços, com riscas e outros sinais de muito jogo virilmente travado, não suportava o aportuguesamento. Aquele humano instrumento, que eu tanto invejava, coordenado com o que nos ia na alma, castigador da heterodoxa bola, de que fazia o que queria e colocava onde queria, nunca poderia ser referido com o descolorido e burocrático vocábulo "estique". Não, aquele era mesmo um  stick a sério.

Mário de Carvalho

https://www.youtube.com/watch?v=gs3bPKXwR9A

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Os derrubadores de beleza - Crise de meditação


Três plátanos, ao lado da casa que, quando a olho, me dá como resposta o nome de "Anna". Anna  ensina a ler a Myriam no azulejo inscrito na parede. Subo a rua, ruas, ao lado desta casa que suporta agora a carga pesada da renovação e do ressurgimento. Deparam-se-me, no jardim aberto que três operários revolvem, três árvores em perigo despedindo uma energia luminosa tal que paro para deixar-me atrair e embeber completamente pelo seu esplendor.
Como nesta área grassa um grande terror por entre as árvores que inesperadamente se vêem marcadas, retiradas do rio dos seres vivos, e abatidas, decido-me a avançar, a descoberto, para a resposta à pergunta que me persegue.
- Será que pensam abater algum destes plátanos? - pergunto a um homem que, afavelmente, me diz que "Sim", que pensam, para alargar uma abertura para o terreno seguinte. Os três plátanos são altos. Os ramos em forma de cone invertido, ou de vértice voltado para cima, têm uma dureza resplandecente sob o meu olhar.
O luar libidinal está aqui, soou essa voz dentro de mim mesma, em tom de escrita, em tom descritivo.
A casa prolongava-se na ausência de casa, no jardim. Fora habitada no princípio do século, e a energia culminante da sua vida brilhava e rebrilhava agora entre os plátanos que imediatamente me pareceram textos que iam abater. "Nós estamos ligados uns aos outros pelas árvores", dissera-me um dia um vagabundo de ____que não tinha nada para dizer.

Maria Gabriela Llansol
Pintura de Munch


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Crescer


Quando eu tinha dois anos
Estavam sempre a dizer:
Dorme muito e come bem
Senão deixas de crescer.
Na dúvida eu perguntei:
- O Papá vai ficar pequenino?
Ele dorme pouco também…


E continuei a crescer
Rodeada de amigos
De todo o género e feitio:

“As fadas… eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar”. (1)




Um dia anunciei à família:
- Eu vou à terra das fadas.
- Mas como? – Perguntaram
- É fácil. Entro na televisão.
Ah!Ah! Estava a brincar!


Falo línguas que invento
A brincar com a minha irmã
E divertimo-nos a cantar
No carro, em casa e na escola
Para quem quiser ouvir
Fados, Rap o que calhar:
“Alacazém
Ziriguidum
Vão chegar um a um
Alacazum
Ziriguidenha
Quem não quiser que não venha”(2)




Um dia na Serra da Estrela
Estive dentro duma nuvem
Enorme, leve e fofinha…
Como gostava de a provar
Abri a boca e… saboreei
Oh, mas que fresquinha!

“É tão bom ser nuvem,
Ter um corpo leve,
E passar, passar.”(3)




- Estás uma menina crescida
Vais para a escola a sério!
E não poupavam elogios
A mim, à nova escola, a tudo!
Na verdade eu pensava
Que ler é muito difícil…
Com os olhos eu já sabia
Com a boca não conseguia!



Setembro começou a escola
Gostei logo, é muito fixe!
Ao princípio achava estranho
E não conseguia entender
A professora ficava zangada
E não me deixava responder
Quando eu sabia as respostas!
“Se estou contente,
sei perfeitamente:
todo o alfabeto
não há que enganar.”(4)



Agora tenho mais amigos
Falo com tudo e com todos
Converso até com as pedras!
Foi com grande entusiasmo
Que na escola, a minha turma
Fez uma linda escultura
Que ficou num jardim público
Com um cartaz que dizia:

“As pedras falam? Pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma história que não calam.”(5)




Não vou falar mais de mim
Só gostava de dizer
Que já tenho um namorado.
Será que ele gosta de mim?

Tinha um cravo no meu balcão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não? (6)




HN
Extractos de poemas de:
1 – Antero de Quental
2 – Margarida Mestre e António-Pedro
4 e 5 – Maria Alberta Menéres
3 e 6 - Eugénio de Andrade

Pintura de Berthe Morisot