Não há em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo nem são casas, nem mora lá gente. São tocas com bichos dentro.
Apesar disso, Cristo Nosso Senhor, aos domingos, digna-se visitar a aldeia na pessoa do padre Unhão, que vem rezar missa ao nascer do sol. O padre apeia-se da égua, assoa-se a um lenço tabaqueiro encardido, tosse, dá duas badaladas no sino, e entra numa igreja tão escura e tão gelada que se lembra sempre duma pneumonia dupla. Diz o intróito com muita solenidade, sobe as escadas de granito, lê, treslê, vira-se, volta-se, benze-se, e, por fim, prega. É sempre uma descompustura de cima abaixo. Que ninguém presta. Que os pais são assim, que as mães são assado, que as filhas são porcas, que os filhos são brutos, que é tudo uma miséria.
Saudel, abismado, ouve. Depois, à saída, põe-se a ruminar. Quem irá dizer lá em cima tão mal do povo? Os homens cavam de manhã à noite, as mulheres parem quantas vezes a Virgem Maria quer, os rapazes e as raparigas vão com o gado... Quem irá meter coisas daquelas nos ouvidos de Deus?
Seja quem for, o certo é que no domingo seguinte, Nosso Senhor, sempre pela boca sem dentes do abade, recomeça a ralhar. Que o fim do mundo está perto e que não haja ilusões. Todos para as profundas dos infernos. Os velhos, as velhas e os novos. Ficam só as ovelhas.
Saudel aí desespera. Chora umas lágrimas negras, barrentas, e geme como quem uiva. Os rebanhos na serra sem pastor! O que não teriam dito de Saudel no céu!
E o pior é que nem o próprio padre Unhão descortina saída para semelhante calamidade, depois da falência do remédio que tentou. Seguro de que a misericórdia divina tudo pode, resolveu salvar o desterrado lugarejo e a sua endemoninhada gente, através de um acto colectivo de expiação. Endoenças. Estava a Semana Santa à porta. Realizasse o povo endoenças, e remisse os pecados na dor e na oração.
Saudel, lanzudo como os carneiros, nem sequer percebeu. O que eram endoenças?
E foi preciso o pároco explicar. Eram a Paixão e a Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, representadas ao natural. De Cristo, Nosso Senhor, fazia o Coelho, que nem de encomenda para o papel.
Miguel Torga
Foto: Auto da Paixão, em Vilar de Perdizes,Montalegre