sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Terra-mãe


José Malhoa

                                                                Silva Porto

Lá dos campos, tristes campos,
Dos campos do Alentejo,
Vim ainda pequenino
- E pequenino me vejo...
Lá nos campos, tristes campos
Da solitária planura,
Nasceu a minha revolta,
Nasceu a minha amargura.
Lá dos campos, tristes campos,
Vem a lembrança de tudo
O que mais amo e desejo.
Vem a fome, a sede e o sono
Das terras do Alentejo!

Raul de Carvalho




Se fores ao Alentejo..




Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o coração aberto,
E ao lado do coração
Leva a rosa da justiça
E o teu filho pela mão.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o teu braço liberto
Para abraçar teu irmão;
Esse irmão que está tão perto
Do teu aperto de mão
E que tão longe amanhece
Nos campos da solidão.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva a alegria de seres
Irmão de quem vai parir
Uma seara de trigo,
Uma charneca a florir,
Um rebanho e um abrigo
E um amanhã que há-de vir
Como se fosse outro amigo
Dentro do sol, a sorrir.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o coração aberto
E o teu filho pela mão.

Eduardo Olímpio

O novo Alentejo

No tempo do Estado Novo, com as Campanhas do Trigo, as representações do Alentejo simplificaram-se e organizaram-se em torno da planície cerealífera - o Celeiro de Portugal - em processo de modernização e de aprofundamento das desigualdades sociais. No período posterior à revolução de Abril de 1974, assistiu-se a um curto e intenso tempo de mudança da tonalidade da paisagem alentejana: o Alentejo era vermelho e a reforma agrária iria desmantelar o latifúndio.
Nas duas últimas décadas as mudanças foram vertiginosas e contraditórias com o final do longo ciclo do trigo e a entrada veloz da vinha, da oliveira e de  um leque variado de culturas regadas e novidades tão inesperadas quanto a produção de papoilas para a extracção do ópio (do povo?). Finalmente, o projecto de rega do Alqueva cumpria a miragem do grande lago e trouxe os investidores internacionais do agro-negócio, o fresquíssimo nome da agricultura. Fala-se novamente nos minérios e na grandeza industrial e portuária de Sines, o Complexo, como lhe chamaram aquando do seu baptismo. No entanto o despovoamento continua com o aprofundamento do envelhecimento e a concentração demográfica nas principais cidades e vilas. Na agricultura trabalha gente do Brasil, da Roménia, da Ucrânia, da Moldávia, da China, do Nepal e de outros orientes. São os novos ratinhos do trabalho sanzonal. Escravos do campo regado em tempos de globalização.
De coisa quase ausente - excepto na Costa alentejana, agora rebaptizada de Sudoeste, com festival e muita estufa de framboesa -, o turismo apareceu com a sua corte de cenografias e relatos sobre gastronomia e vinhos, paisagens, praias, rotas, monumentos megalíticos, Patrimónios da Humanidade, caça, turismo rural, natureza, porcos pretos, casas brancas, resorts, cante, chocalho, centros históricos, aldeias típicas, montados, cavalos, perdizes, castelos e fortalezas e tudo e tudo. O latifúndio monocórdico pariu uma estridência radical.

Álvaro Domingues, 2017


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Avós

Minha mão tem manchas,

pintas marrons como ovinhos de codorna.

Crianças acham engraçado

e exibem as suas com alegria,

na certeza - que também já tive -

de que seguirão imunes.

Aproveito e para meu descanso

armo com elas um pequeno circo.

Não temos protecção para o que foi vivido,

insónias, esperas de trem, de notícias,

pessoas que se atrasaram sem aviso, 

desgosto pela comida esfriando na mesa posta.

Contra todo artifício, nosso olhar nos revela.

Não perturbe inocentes, pois não há perdas

e, tal qual o novo,

o velho também é mistério.


Adélia Prado, prémio Camões 2024

https://www.youtube.com/watch?v=4YOyEdWPg-k