sábado, 26 de outubro de 2024

Saí do comboio

















Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)




A locomotiva Tchaf



Ti João, o fogueiro, cuspiu nas mãos, pegou na pá e começou a lançar muito carvão na fornalha.Trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum. As pazadas de carvão entravam na fornalha a um ritmo certo e ardiam numa explosão breve.- Já está boa, Ti João. A pressão já atingiu o máximo, exclamou o maquinista.
- Partiiiida!, gritou uma voz lá ao longe, ao mesmo tempo que se ouvia a corneta do chefe da estação.
- U, U, U, respondeu a máquina ao aviso da corneta.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, faz mais fumo, faz mais fogo, força firme foge-foge nesta viagem sem fim.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, pouca-terra, pouca-terra, puxa-passa, passa-puxa a potência do vapor para a roda pedaleira.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, rilha o ferro, range o rail, roda a roda reduplica a raiva de mil corcéis a escoucinhar furiosos as alavancas da máquina.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, a caldeira a rebentar já não vive, sobrevive aos cavalos de vapor – catrapum e catrapum, catarapum e catrapum – patadas no corpo-aço das alavancas motrizes e vai-que-vem e vem-que-vai são muitas mil toneladas de aço e ferro para arrastar.
Corre, corre comboiozinho, conta-conta a tua história, canta-canta a melopeia – tum, tum, tum e tum, tum, tum – toada música-toante, melodia de viagens cem mil vezes repetidas quase até ao infinito.
O fogueiro afogueado anima a marcha do trem, canta modinhas bonitas, assobia sonhos-sol e os seus cavalos brancos crinas soltas, força livre puxam pela geringonça - tchaf, tchaf, tchaf, tchaf – respondendo com amor àquele duende mágico mascarrado com carvão.

Carlos Correia
Fotos do comboio do Vale do Vouga

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Memórias de viagens de comboio


As carruagens de primeira classe: os estofos cor de mel, as redes grossas onde às vezes se acomodavam os meninos já grandotes, para não pagar bilhete, tinham um tom elegante e ligeiramente dramático. Como se tivessem ainda o perfume de mulheres bonitas e galãs de chapéu de palhinha. Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. Às vezes, alguém comprava água fresca na Ermida ou uma regueifa em Valongo. Mas era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. Havia quem lesse um livro durante todo o tempo, as Décadas de João de Barros, não se pode imaginar maior presunção. Levantavam os olhos de vez em quando para gozar a impressão que faziam.
Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. Lia-se o jornal, O Comércio do Porto, ia-se à janela, que se abria com fragor para ver como era desprender a correia que a segurava. As mulheres protestavam, muito remexidas nos assentos, e os filhos olhavam como se fossem espectadores duma briga prestes a acontecer. Uma vareja entrava pela janela anunciando o Verão pastoso dum calor que encrespava as folhas. A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente, tinha pena das mulheres perdidas e culpava os ricos dos luxos e dos maus exemplos. Calavam-se de repente quando passava uma desconhecida de saltos altos que procurava o lugar com o bilhete na mão.
Enquanto na terceira  classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos. Nos açafates forrados com uma toalha de linho, estava o requeijão e as primeiras cerejas em rocas de pau verde. As criadinhas que saíam de casa para servir na cidade sorriam debilmente, apertadas num colete artesanal, ainda de ilhós, muito à antiga. Tinham olhos de quem chorou à despedida, mas o comboio dissipava-lhes a tristeza como se fosse um berço em que as promessas escurecem as recordações.

Agustina Bessa-Luís
Foto da estação dos caminhos de ferro de Aveiro

sábado, 5 de outubro de 2024

Mapa dos caminhos-de-ferro






Percorro com o dedo, no mapa
do passado, as estações da vida. Passo pelas
do verão, onde entro na automotora que apita
a cada passagem de nível, afugentando
as aves e as raparigas de cabelos soltos
ao sol do meio-dia; saio nas do outono,
onde pergunto aos revisores de órbitas 
vazias a que horas sai o comboio
do inverno; sento-me na carruagem
da frente do comboio a vapor, e vejo o fumo
sair em direcção aos céus que anunciam
a primavera. Mas não encontro a estação
certa, aquela em que via o louco, de pernas
enterradas no lodo da ria, discursar
aos peixes voadores; essa em que o chefe
da estação agitava a bandeira para os carris
vazios, esperando que algum amor perdido
na adolescência chegasse para o libertar
da campainha do telefone; aquela em que,
um dia, pudemos desembarcar, como
se fosse ali o destino desejado, sem primeiras,
segundas e terceiras classes. Hoje,
porém, vejo apagar-se esse mapa, e
a única estação é esta, em que ontem, hoje
e amanhã são, todos os dias, o dia
que amanhece nas minhas mãos, quando
procuro as estações da vida.


Nuno Júdice
Pintura mural - BIGOD