quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Eu sou...

Eu sou todas as criaturas e todas as cousas. Eu, na verdade, não sou eu; sou o Chizinho, com um talher de prata, dentro duma casa esburacada; sou o Chico Nozes e o seu remorso vagabundo; sou a Gravuna e a sua fome; sou o Gesso a pedir esmola para as almas; sou a Beatriz e a sua morte na flor da idade; sou o Silvino e a sua loucura primaveril e sou a procissão de Quinta-Feira Santa de Trevas... e aquela nuvem ao vento e aquela árvore desgrenhada como as tranças da Aflição...

Eis o assunto deste livro: certas pessoas e certas cousas que o Tempo espectralizou na minha lembrança.
Amei-as, assimilei-as; não as distingo do meu ser - floresta de sombras ao luar...

O homem é como um cego que só se vê sonhando. Sonha que vê... Nada mais.

Já notou o leitor as pegadas de certas horas que ficam para sempre em nosso rosto? Embora gravadas na alma, sobem ao nosso rosto e ali ficam para sempre.
A fisionomia vai guardando, em linhas materiais, o íntimo desenho das impressões que vibram através da nossa alma. Cada impressão é uma vibração escura ou luminosa...um demónio ou um anjo dados num estremecimento repentino. E este abalo é a nossa profunda surpresa ante um milagre.
A alegria é um anjo; a tristeza é um demónio... A alegria é um demónio dourado; a tristeza um anjo negro.

O leitor já notou...O leitor? Sim: o meu leitor ideal que eu não troco por todos os leitores de carne e osso... O meu leitor ideal! És tu; sou eu, sou eu mesmo... aquele espectro que me não deixa. És tu, meu cara leitor... Por tua causa, escrevo noite e dia e me consumo neste delírio quixotesco de lançar palavras ao vento... Há outros que atiram pedras, de tal modo concebem a realidade! Uma pedra existe. E as palavras existem, porventura?

Teixeira de Pascoaes

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