sábado, 19 de fevereiro de 2011
Alegria Breve
Mas de súbito ergo-me, percorro a casa escura no prazer e no medo de ouvir os meus passos. Ouço-os. São fortes, ó tu - tu quem? São fortes, ressoam pela noite, são os passos do primeiro homem do mundo. Uma alegria terrível inunda-me. É uma alegria absoluta, imperiosa e todavia calma como a lentidão da terra. Armo o gira-discos, abro as janelas e saio.
Absurdamente, não cortaram a energia eléctrica para a aldeia. Há mesmo três ou quatro lâmpadas que ainda acendem. Decerto as outras fundiram-se. Fora o ar nítido corta-me, filtrado, branco. Pureza do limite, ó recomeço perfeito. Passo pelas ruas abandonadas, de casa mudas. Fitam-me, rondam-me, coalhadas de vozes e de sombras. Sou eu, estou aqui - se gritasses? Quase todas caem aos bocados, as janelas desconjuntadas, algumas de portas abertas. Se gritasses? Certa noite Águeda e eu ouvimos um grande estrondo como de tremor de terra: um telhado que abatera. Mas agora, nenhum rumor. Só a música(...)
Subitamente, um uivo subiu longo, angustiado. Vem dos fundos da serra, serpeia à sua volta, sobe ainda por sobre mim, em espiral. Outro uivo respondeu de longe, torneando pelo ar. Os cães, os cães. Deviam ter abalado há muito, como os outros que se foram. Mas estes ficaram ainda, à espera do impossível. Agora os uivos multiplicam-se, enovelando-se na música. Em giros lentos, sobem da fundura dos córregos, circulam em torno da montanha, erguem o desespero até às estrelas. É uma noite sem lua, plácida e nítida, verdade simples(...)
E repentinamente, absurdamente, ressoa no adro deserto uma forte badalada. Estremeço: a aprendizagem é difícil. Algum pássaro nocturno que embateu no sino? Já não ouço ali a música. Um gato bufou, uma ave, uma sombra, grifando o ar em diagonal como uma seta. Os cães sossegaram: possivelmente a música parou. Na fímbria branca dos telhados, nas árvores ossificadas, no ar imóvel - o silêncio. Vibra, retine como um cristal, ouço-o. Então abruptamente atiro uma patada violenta: para desentorpecer um pé? para tomar posse do mundo: um estrondo reboa com o anúncio de um Deus.(...) Terei divindade que chegue? - tão grande o universo. Pequeno e medroso aqui. Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo inteiro. Sou eu. Regresso, enfim, a casa, acendo o lume. Terei de ir à mata cortar lenha. Amanhã? Talvez amanhã. Dorme. Estás tão cansado. Amanhã é um novo dia.
Vergílio Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=Nj_X-Uv7yyA
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