terça-feira, 27 de março de 2012

Sonho do doutor Sigmund Freud


Na noite de vinte e dois de Setembro de 1939, um dia antes de morrer, o doutor Sigmund Freud, intérprete dos sonhos alheios, teve um sonho.
Sonhou que se tornara Dora e atravessava Viena bombardeada. A cidade estava destruída, e das ruínas dos palácios levantava-se pó e fumo.
Como é possível que esta cidade tenha sido destruída?, perguntava-se o doutor Freud, e tentava segurar o seio, que era postiço. Mas naquele momento cruzou-se, na Rathausstrasse, com Frau Marta, que se aproximava com a Neue Frei Presse mesmo à sua frente.
Oh, querida Dora, disse Frau Marta, acabei agora mesmo de ler que o doutor Freud regressou a Viena vindo de Paris e vive mesmo aqui, no número sete da Rathausstrasse, talvez lhe fizesse bem consultá-lo. E dizendo isto, afastou com o pé o cadáver de um soldado.
O doutor Freud sentiu uma grande vergonha, e baixou o véu. Não percebo porquê, disse timidamente.
Porque você tem muitos problemas, querida Dora, disse Frau Marta, você tem muitos problemas como todos nós, precisa de se abrir com alguém e, acredite no que lhe digo, não há ninguém melhor do que o doutor Freud para as confidências, ele percebe tudo das mulheres, às vezes parece verdadeiramente uma mulher, de tanto que se mete na pele delas.
O doutor Freud despediu-se com gentileza mas apressadamente e retomou o seu caminho(...)
Avançou pela Rathausstrasse e chegou à frente da sua casa. A sua casa, a sua bonita casa, já não existia, fora destruída por um obus. Mas no jardinzinho, que sobrevivia intacto, estava o seu divã. E em cima do divã estava deitado um labrego de tamancos e camisa de fora, que ressonava.
O doutor Freud aproximou-se dele e acordou-o. O que é que está a fazer aqui?, perguntou-lhe.
O labrego fixou-o com os olhos esbugalhados. Procuro o doutor Freud, disse.
O doutor Freud sou eu, disse o doutor Freud.
Não me faça rir, senhora, disse o labrego.
Muito bem, disse o doutor Freud, vou confessar-lhe uma coisa, hoje decidi assumir o aspecto de uma doente minha, é por isso que estou assim vestido, sou Dora.
Dora, disse o labrego, mas eu amo-te. E dizendo isto abraçou-o. O doutor Freud sentiu um grande desfalecimento e deixou-se cair no divã. E naquele momento acordou. Era a sua última noite, mas ele não sabia.

Antonio Tabucchi
http://www.youtube.com/watch?v=dViZ3KouVDQ&feature=related

segunda-feira, 19 de março de 2012

Os Maias


- E o pequeno, onde está o pequeno? - exclamou Afonso.
Pedro pareceu recordar-se:
- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
O velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxazinha na mão.
Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto ao colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha doméstica; agora só havia ali aquela facezinha tenra, que se lhe babava nos braços...
- Como se chama ele?
- Carlos Eduardo -murmurou a ama.
- Carlos Eduardo, hem?
Ficou a olhá-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhas que não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o percebesse, disse-lhe:
- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É preciso amar o avô!
E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.
Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, pôs-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois, com todo o cuidado, foi colocá-lo nos braços da ama.

Eça de Queiroz
http://www.youtube.com/watch?v=iNntUHDc6U0

segunda-feira, 12 de março de 2012

Linha do Estoril


Fui ter com o mar. Das vezes que cedo ao impulso e satisfaço saudades do mar a sério, o das marés vivas que afrontam as praias desertas, sinto, diante da paisagem turvada e violenta, revigorar-se todo o meu ser como se o banho de maresia fosse o grande tónico para prolongar a vida.
Num paredão em grandes letras: AMAR O MAR. É um programa, uma interpelação, um desafio. Às vezes os grafitis acertam no que enunciam de forma ostensiva, irrecusável. Lembro-me de ter apontado um tão afirmativo que não admitia contestação: AMAR É NÃO TER MEDO. Li-o em Coimbra, há anos, perto do Jardim Botânico.
Apeteceu-me, agora, associar os dois, decerto escritos em tempos diferentes, por pessoas diferentes, pensando coisas diferentes. Aí vai: AMAR O MAR É NÃO TER MEDO. O que quer que isto queira dizer, parece, à primeira leitura, tão óbvio que não merece mais comentários. As vagas incessantes, as ondas a explodirem, a vibração do ar, tudo nos arrasta para a ideia de que a terra é um frágil tapete, um litoral apetecível à mercê da conquista das águas. Elas irão recuperar o que já lhes pertenceu. Dela ascendemos, genuína mãe da natureza terrestre. O mar é a expressão mais cabal da eternidade. Amá-lo é não ter medo das forças contraditórias da vida. Em última análise, não ter medo da morte.

António Torrado
http://www.youtube.com/watch?v=stcQlmM941k

domingo, 4 de março de 2012

Em Drave, 1997


Sobre a respiração da terra, ao longe,
o vulto negro, dobrado, de mulher.
Traz às costas todas as casas da aldeia
e empurra sozinha a sombra de um arado.
O ritmo é cadenciado, lento, monótono,
de imprevisíveis paragens nos portais do tempo.
Toda a terra é sua e suor
toda ela é terra, marcada,
abanada por secas e temporais.
Terra há muito sem primavera
desprovida de cio e parto de flores.
Seus canteiros de xaile preto têm raízes apenas.
Terra sem verões, também,
seca, morna, terra pálida
onde pássaros se ausentam da brisa fresca matinal.
Seu corpo é o inverno carregado de vendavais,
saias de nuvens pretas roçando a lama
como uma árvore embalada de outono
de seiva branda e espargindo lume.

Maria José Castro
http://www.youtube.com/watch?v=L9RifuYKvFo