sábado, 23 de fevereiro de 2013

Em torno do imponderável

















                 
                   Deus não precisava
                   de tanto espavento
                   para ser Deus

                   Mesmo quando sabemos
                   o que vamos fazer
                   é sempre o vazio
                   que está à nossa frente

                   Estar onde estamos
                   não é uma garantia
                   de estar onde estamos

                   O mais seguro abrigo
                   é o que oscila um pouco
                   como se oscilássemos
                   sobre a matéria viva
                   ou no coração do espaço

                   Estar à beira de um regato
                   ouvindo o sussurro do vento
                   num canavial
                   é mais do que uma prece
                   porque somos um arco de duração voluptuosa

                  O tempo excede-nos
                  num movimento circular
                  que vai além da vida
                  que vai além da morte

                  António Ramos Rosa
                  http://www.youtube.com/watch?v=9xB_X9BOAOU

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Memórias


Revejo por fim o interior
e dá-me vontade de cantar o lado oblíquo das coisas.
Canto mesa cadeira chão
janela prateleira prato.
Canto o fumo da lareira
acendo-me e fico suspensa sobre o mar
canto pássaro rocha concha
areia espelho que me rouba de mim.
Canto garrafas vazias ruínas
gestos íntimos de panelas e tachos
olhares líquidos vestidos trapos
que vestem o vértice do quarto
que é uma sala com cozinha a um canto.

Em que parte da casa começará a noite?


domingo, 10 de fevereiro de 2013

O mais importante


2ª feira, 4 de outubro
Montagem. Uma obra face a outra obra, vizinha de outra obra, distante de outra obra. Recorre-se sempre a soluções parciais. Porque na montagem de uma exposição deve manter-se sempre um sentido enigmático sobre o que é mostrado, para que quem visita parta à procura de mais sobre o autor, sobre relações, sobre elos; e sobretudo sobre o que lá não foi dito e que não está mesmo na obra, mas que é já o domínio imaginário e criativo (ou somente informativo ou formativo) daquele que foi visitante. O mais importante é o que fica por concluir, o que não é dito, o que não é mostrado. Quanto à Obra de um artista, a sua Representação, a sua Existência, ela ultrapassa quer o domínio da vontade quer o domínio dos fenómenos e o do conhecimento. Inscreve-se curiosamente (assim o entendo muitas vezes) entre uma vontade de viver e uma negação de uma vontade de viver.
A obra de um artista é uma maneira de produção absoluta, mas o nosso conhecimento sobre ela é particular e profundamente relativo. O próprio artista tem um pensamento que a atravessa, mas não terá um domínio inteiro sobre o seu espaço e sobre o seu tempo. Há sempre, por todos os lados, por todas as partes, que respeitar-lhe o mistério. E, no entanto, o mais importante, o mais grave, o mais produtivo (útil e inútil a um só tempo) é afrontar o seu enigma, o enigma da sua feitura.

João Miguel Fernandes Jorge

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Bagagem perdida


E
quando encontras no bolso do casaco das viagens
pequenos papéis esquecidos pelo gesto de
os reteres? Não o fazes por acaso. Investes
na epifania de veres regressar à mão
uma entrada nos Uffizi (a magnificência
do Vasa) as cores da
Casa Batló. Nesses papéis onde a data é
o cotão do que passou
reside a ilusão de te evadires daqui -
deste país a fingir que não
te deixa crescer (Europa
de ouropel)  lesto
a nivelar por baixo. Chegam-te
vindos do nada quando já nada esperavas
(assim é este país
quando tornas de viagem:)
estás no carrossel dos dias e
nunca mais é a tua mala
(nunca mais é
a tua mala) nunca mais
é a tua mala.

João Luís Barreto Guimarães
http://www.youtube.com/watch?v=e9RS4biqyAc