domingo, 2 de junho de 2013

As águas livres


Fragmentos, ecos, pedaços de memórias. Coisas soltas, sem nexo:
Ainda se peneirava a farinha para fazer o pão, havia nos armários uma série de peneiras redondas, encaixadas umas nas outras e com redes de malhas diferentes.
E havia o ferro velho, que comprava garrafas e frascos de vidro, tubos vazios de pasta de dentes, jornais, papéis, pregos, latas, fechaduras estragadas ou partidas.
E o farrapeiro, que chegava à procura de roupa velha e pedaços de tecido, peles de coelho e tranças de mulheres. Vinha de carroça e por cada saco de vinte e cinco quilos que enchia de farrapos recebia do patrão travessas e pratos de faiança, que depois vendia no mercado. Dos cabelos entrançados das mulheres    faziam-se perucas, uma arte difícil sobre a qual ele pouco dizia, a não ser que às vezes era preciso tingirem-se os cabelos, numa cor ao gosto de quem encomendava. Prometeu que um dia nos mostrava uma peruca pronta, que ia trazer na carroça, dentro de uma caixa de chapéus, mas nunca chegou a trazê-la.
E havia a peixeira, o leiteiro, o padeiro, o latoeiro, o mola-tesouras. E "o velho da areia", que aparecia uma vez por mês e vendia um tostão e meio de areia branca muito fina com que se areavam os tachos, frigideiras, talheres, objectos de ferro ou de alumínio, esfregando-os com força com um pano molhado passado pela areia. Era um velho magro, de bigode amarelado de nicotina e um cheiro insuportável a mau tabaco, a suor e a pó, no capote alentejano que trazia aos ombros no inverno. Gostava de crianças e ria muito connosco quando vínhamos ao portão do quintal. Reparávamos então que os seus óculos estavam baços e o capote se começava a desfazer nos ombros.

Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=zOhbSWR2XN4

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