segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Cantiga
O gosto irrecuperável
dos frutos secos
nos invernos da infância,
o estalido das cascas
quando partíamos
aquelas pulsações de madeira,
sarcófagos mais que perfeitos
arrancados a
algum coração de árvore.
Inês Lourenço
https://www.youtube.com/watch?v=IX4-BrsPX64
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Natal à beira-rio
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
David Mourão-Ferreira
https://www.youtube.com/watch?v=GOH7Bo9IG9s
domingo, 14 de dezembro de 2014
Criança em ruínas
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
José Luís Peixoto
https://www.youtube.com/watch?v=crDwhjj6raM
domingo, 7 de dezembro de 2014
Os frutos repousados
e as pequenas sombras alongadas
sobre a mesa de madeira e pedra.
A brisa entra por uma porta antiga.
Uma pétala branca cai de uma flor branca.
Sou, mais do que sou, estou
na perfeição das coisas que me envolvem.
Repouso na sinuosa exactidão.
António Ramos Rosa
https://www.youtube.com/watch?v=u2RRQFS84a8
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Manoel de Barros
https://www.youtube.com/watch?v=kmZELayEs_g
domingo, 23 de novembro de 2014
Canção de uma sombra
Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela onde me vou
Debruçar, para ouvir a voz das coisas,
Eu não era o que sou.
Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol, que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.
Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espetros à vida, e se infiltrou,
Como fluído mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.
E se a estrela da tarde não brilhasse;
E se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
Eu não era o que sou.
Ah, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombra povoou,
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.
Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou.
Teixeira de Pascoaes
https://www.youtube.com/watch?v=XSgMuB9K7f0
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Manas
Tendo a mãe de se ausentar
Disse à filha mais velhinha:
"Fica tu em meu lugar
De guarda à nossa casinha;
A menina está no berço,
Embala-a suavemente,
Entretendo a inocente
Com esta cantiga em verso:
Passarinhos, vinde em bando
A ver anjinho tão lindo
Que a mana está embalando
Contente de o ver dormindo."
João de Deus
https://www.youtube.com/watch?v=aGFUh4FhdQ8
domingo, 9 de novembro de 2014
A bailarina
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
Cecília Meireles
https://www.youtube.com/watch?v=W7D3DhnBs5I
sábado, 1 de novembro de 2014
O tempo
O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques, lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos
insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação
A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas
José Tolentino Mendonça
https://www.youtube.com/watch?v=O2P1khIyTX8
domingo, 26 de outubro de 2014
Miguel Ângelo
Do caos humano, confuso e hostil,
Sobe milagroso o teu perfil
O mais claro ensinamento.
O olhar procura
O mais profundo fundo
O mais longínquo além.
O nariz sente e respira
Cada exalação da vida
E a boca renuncia.
Sophia de Mello Breyner Andresen
http://www.youtube.com/watch?v=Jf-spvYtP9A
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Roma
No ano de 1670, prega o Padre António Vieira, em Roma, o Sermão de Quarta-Feira de Cinzas. Na Igreja de Santo António dos Portugueses, ele pronuncia as enigmáticas palavras: "Tudo é pó..." Nenhum lugar como a Cidade Eterna para sofrer a inspiração de tal dizer, e o grande pregador não era homem para ficar indiferente ao motivo extraordinário que aos olhos se lhe apresenta. Roma impressiona-o como um imenso sepulcro, e ele detém-se a recordar a exclamação de Santo Agostinho que, vindo de África, ali pergunta: Onde estão os cônsules romanos? Que se fez dos Césares e dos Pompeus? Os Titos, os Trajanos, que é deles? Tudo é pó, tudo é cinza. O letrado português não poupa a cidade, amortalha-a bem no seu manto de poeira, atribui-lhe o destino de Babilónia, muda-a numa caveira do mundo. É muito rigor, de certo - mas aquilo que se diz à multidão tem que ter o som de mil línguas e a força de mil braços; ninguém murmura um salmo num campo coberto pela turba, mas grita e agiganta a sua verdade para que os espíritos mais turvos e os ouvidos mais distantes a possam entender.
Mas agora que a minha linguagem dispensa a sonoridade que é dada a um pregador, encontro-me com Roma e pergunto a mim própria: Que vultos distingo entre as ruínas, que é Roma, a que foi execrada e nomeada como uma águia nas capitais mais soberbas, desde Alexandria a Palmira? A primeira visão, ao passar no Corso, é de alegria do instinto, de simpatia frívola e sobretudo de vida fácil. Nos passeios, onde há flores, onde se improvisam terraços de Verão, toda a gente conversa, bebe um copo de sumo de frutas, exibe-se com ingenuidade. O trânsito é a única coisa séria em Roma, a única coisa pelo menos que inspira cuidado; é tão desordenado quanto jovial e oportuno, as vitórias puxadas por cavalos pacientes entalam-se entre filas de automóveis que sobem a Via Nazionale. Em dois dias há familiaridade com Roma; ela parece-nos conhecida há muito tempo, desde a Estação Termini até à Via de Caracala, desde a Avenida de Victor Manuel até ao bairro Sant`Ângelo. É uma cidade pequena, íntima, duma elegância um pouco duvidosa. À noite, Roma reserva toda a sua energia eléctrica para os seus monumentos. Foca-os com projectores poderosos, sabe valorizar as suas pedras com uma espécie de arte toda teatral, e não é raro descobrirmos sob a luz duma lâmpada uma sugestão que com o clarão do sol não seríamos capazes de adivinhar; os mais grosseiros tijolos animam-se com esse esplendor lunar, e, nas proximidades do Forum, onde vagueiam rapazes solitários, assistimos à montagem dum novo efeito de luzes que incidem sobre as colunas, revelam o relevo dum arco, ressuscitam os restos do templo de Vespasiano. Julgamos ouvir os gemidos das prisões mamertinas quando um raio de claridade é experimentado sobre elas, o solo, juncado de destroços, é varrido agora por um feixe rápido de prata - parece-nos apanhar ainda a dobra duma toga ou a jónica serenidade duma colunata, ou talvez o perfil delido dum carneiro de sacrifício. Todas as ruínas estão assim pintadas, os vermelhos alicerces dumas termas ou a dança circular das colunas do templo de Vesta resplandecem com o pó luminoso vertido sobre eles.
Agustina Bessa-Luís
https://www.youtube.com/watch?v=9u1oT7QtQp4
Agustina Bessa-Luís
https://www.youtube.com/watch?v=9u1oT7QtQp4
domingo, 12 de outubro de 2014
Desejar a viagem
Partir, seguir as pisadas do pastor, é experimentar um género de panteísmo extremamente pagão e reencontrar os vestígios dos antigos deuses - deuses das encruzilhadas e da sorte, da fortuna e da embriaguez, da fecundidade e da alegria, deuses das estradas e da comunicação, da natureza e da fatalidade - e libertar-se das amarras, das limitações e das servidões do mundo moderno. O seu périplo abarca todo o planeta e vale-lhe a condenação daquilo que delimita e escraviza: o Trabalho, a Família e a Pátria, pelo menos no que diz respeito às limitações mais visíveis e identificáveis.
Enquanto nómada auto-suficiente, o viajante recusa o tempo social, colectivo e limitador, em proveito de um tempo singular construído a partir de durações subjectivas e de instantes festivos apetecidos e desejados. Associal, insociável, irrecuperável, o nómada ignora o relógio e guia-se pelo Sol e pelas estrelas, aprende com as constelações e com o movimento do astro no céu, não tem horário, mas possui um olho de animal acostumado a distinguir as alvoradas, as auroras, as trovoadas, as abertas, os crepúsculos, os eclipses, os cometas, as cintilações estelares, sabe ler as nuvens e decifrar as suas promessas, interpreta os ventos e conhece os seus hábitos. O capricho governa os seus projectos em comunhão com os ritmos da natureza. Ele e o uso que faz do mundo, nada mais importa - daí fazer parte dos banidos e dos recusados. Quando se faz à estrada, obedece a uma força que, brotando do seu ventre e dos meandros do seu inconsciente, o coloca no caminho, o impulsiona e abre-lhe o mundo como um fruto exótico, raro e dispendioso. Desde o primeiro passo, realiza o seu destino. Nos caminhos e nos trilhos, nas estepes e nos desertos, nas ruas das megalópoles ou na desolação das pampas, na onda profunda ou no ar perpassado por correntes invisíveis, o encontro com a sua sombra é inevitável - ele sabe que não tem escolha.
Michel Onfray
https://www.youtube.com/watch?v=s_83tDfVuHY
https://www.youtube.com/watch?v=s_83tDfVuHY
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Outono
Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=vdCEn_wWm2I
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Dia de Outono
Senhor, é tempo. O Verão foi muito longo.
Põe nos quadrantes já sombras escuras
e nas planuras larga o vento à solta.
Obriga os frutos a que se encham mais;
dá-lhes do sul inda dois dias quentes,
leva-os à perfeição e faze que entrem
no vinho denso as doçuras finais.
Quem não tem casa já não vai erguê-la.
Quem esteja só, fica mais só agora,
lendo, escrevendo cartas, altas horas
ou, dum lado para o outro, na alameda,
inquieto andando, enquanto as folhas correm.
Rainer Maria Rilke
(trad. de A. Herculano de Carvalho)
https://www.youtube.com/watch?v=Q2q_ngA-X3c
sábado, 13 de setembro de 2014
Olhão
Agosto - 1922
De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro, só lhe faltam os esguios minaretes.
É no cais, ao pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para embarque, que eu assisto todos os dias ao espectáculo da chegada dos barcos e que vejo os peixes, as redes e o leilão. Para lá da água empoçada ficam os areais, a ilha da Armona, a do Levante, a ilha da Culatra e o farol de Santa Maria. E é aqui também, na agitação da baixa-mar, que eu anoto os nomes das diferentes redes e dos diferentes peixes: a murjona, o tapa-esteiros, que apanha o peixe no rio à maneira que a água vai vazando, a toneira para os chocos e as lulas, a redinha e o tresmalho, e outras engenhocas do subtil pescador, que chega a agarrar o langueirão com um botão de ceroula e alguns alfinetes e o polvo com velhos alcatruzes de nora. Tudo vem ter ao cais - peixes esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária - do rio o linguado, o pregado, o peixe-rei, o charroco, os capitões, os alcabrozes, os robalos, etc., uns pescados à fisga, como a liça, a safata, o robalo, outros ao anzol e ao candeio; e do mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de galhudos, que têm um pique no cerro, de monstruosas raias, de donzelas, de albufares pardacentos e enormes e de feios dentulhos. Atiram do fundo do barco para as pedras a abrótea, bandos de vermelhos e lindos cantarilhos, que parecem peixes de aquário, chaputas de um negro prateado com o rabo aberto como as pontas da cauda da andorinha, esguias tintureiras, corvinas e cestos de polvos enrodilhados.
É uma magnificência. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, só boca, com uma boca maior que um açafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabeça com uma isca na extremidade. Já cheiro a peixe e a salmoura e não me canso.
É uma magnificência. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, só boca, com uma boca maior que um açafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabeça com uma isca na extremidade. Já cheiro a peixe e a salmoura e não me canso.
http://www.youtube.com/watch?v=A2RSJ6NUscQ
terça-feira, 9 de setembro de 2014
O Algarve
O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril. A terra não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão.
Quem tentasse explicar a estes gnomos ensimesmados as agruras dum homem do Doiro a saibrar mortórios de sol a sol, não obtinha compreensão. Moiros encantados numa moirama sem areais, vivem da graça que só a raros sítios do mundo a natureza concedeu. Os caminhos não têm abismos, não há fragas estéreis e agressivas, não se vê outra neve a não ser a das corolas abertas, e as fainas do mar são tão lúdicas como as da terra.
Hospedado numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente, sem trazer a terreiro a má-criação dos meus pecados velhos. Os guias e os prospectos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcáreo onde o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem que relembre em Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo, o maior e o mais infeliz rei de Portugal.
Vou, mas fico na minha. Em toda a parte é a mesma volúpia que me invade, a mesma beatitude que me possui. Que me importam as paredes do castelo de Silves pintadas de sangue fiel ou infiel, as arquitecturas do Marquês, em Vila Real de Santo António, ou os biocos de Olhão? A lição que me interessa não é histórica, nem artística, nem etnográfica. Cheio de façanhas, de urbanismos e de folclore ando eu. Apaixona-me é a vivência da minha própria felicidade num mundo que me recebe na mais discreta e acolhedora simplicidade.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=acs7d9aQcc4
Hospedado numa bem-aventurança terrena, a minha obrigação é fruí-la discretamente, sem trazer a terreiro a má-criação dos meus pecados velhos. Os guias e os prospectos de turismo bem me empurram: - Que não deixe de ir ver isto, examinar aquilo, verificar aqueloutro. Mandam-me à praia da Rocha tomar banhos oficiais em Janeiro; recomendam-me, em Sagres, o banco de calcáreo onde o Infante magicava; identificam-me a casa que viu nascer João de Deus; querem que relembre em Alvor a lenta e trágica agonia de D. João segundo, o maior e o mais infeliz rei de Portugal.
Vou, mas fico na minha. Em toda a parte é a mesma volúpia que me invade, a mesma beatitude que me possui. Que me importam as paredes do castelo de Silves pintadas de sangue fiel ou infiel, as arquitecturas do Marquês, em Vila Real de Santo António, ou os biocos de Olhão? A lição que me interessa não é histórica, nem artística, nem etnográfica. Cheio de façanhas, de urbanismos e de folclore ando eu. Apaixona-me é a vivência da minha própria felicidade num mundo que me recebe na mais discreta e acolhedora simplicidade.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=acs7d9aQcc4
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Visita
Ao longe desdobram-se os montes
e nas suas pregas, fixa, a aldeia
aparece esculpida a negro do ventre da terra.
Abre-se no vale, desdobrando as asas,
seu rosto ganha o contorno de casas
e o corpo é um ribeiro.
Viemos para te devorar
para além da terra árida que nos mostras.
Viemos para vencer o teu orgulho só
e colher um pouco do teu silêncio
para sossegar a nossa voz.
Maria José Castro
https://www.youtube.com/watch?v=ebt9AmKUoAM
domingo, 3 de agosto de 2014
Um Dó Li Tá
Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais
vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
- Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey
- Embora pôr o Rato Mickey?
mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu
- Mete-se antes a bandeira como o Obama
e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as stations virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam todos contentes, a mandarem na gente.
Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim escola preocupa-me. A ASAE devia andar de olho na venda de espirituosos a menores. Outra coisa que me preocupa é a ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o significado de palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou
- Não pretendo esconder nem ocultar
apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar ainda formada, e entender que mudar constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância, um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los, perdoar-lhes.
António Lobo Antunes
https://www.youtube.com/watch?v=8OIly6RxlJE
António Lobo Antunes
https://www.youtube.com/watch?v=8OIly6RxlJE
domingo, 27 de julho de 2014
Carta a Vossa Excelência
Apesar de terem exterminado o meu povo, os meus pais, a minha mulher, os meus irmãos e os meus filhos, continuarei a manter, perante vós, uma linguagem correta e até delicada visto entender que esta é a única forma de os seres humanos educados comunicarem e dialogarem entre si. Assim, esquecendo as barbaridades físicas que fizeram aos meus filhos, gostaria nesta oportunidade de vos pedir, de uma forma objetiva, um pequeno empréstimo no valor de cinquenta mil euros.
Esta quantia que, prometo, aplicarei exclusivamente num memorial de homenagem às vítimas de Vossa Excelência, será reembolsada, com os juros devidos, ainda antes do fim do ano. Se tal não suceder comprometo-me, desde já, a disponibilizar um dos meus órgãos para que os filhos de Vossa Excelência possam usufruir de uma espécie de suplente orgânico. Gostaria de vos assegurar que, neste instante, nesta cadeira, escrevo esta carta com uma postura contida e modesta e todo o meu ódio está por agora totalmente suspenso, facto que estou certo de que valorizará no que tal significa de tremendo esforço.
Despeço-me desejando, com sinceridade, que dirija os seus próximos massacres para os meus vizinhos de cima, cujas crianças não param de jogar futebol em plena casa, por vezes à noite.
Com os melhores cumprimentos,
subscrevo-me atenciosamente.
Gonçalo M. Tavares
https://www.youtube.com/watch?v=YH2m7eQOunE
https://www.youtube.com/watch?v=YH2m7eQOunE
domingo, 20 de julho de 2014
Meu país desgraçado
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas...
Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
- busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.
E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.
Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!
Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
- olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!
Sebastião da Gama
https://www.youtube.com/watch?v=es-3-psGMUU
domingo, 13 de julho de 2014
Anjos de terra
Anjos, existem anjos? Volúveis seres
que são um instante de voluptuosa brisa
em que o tempo é a forma do desejo
e do sono das folhas e das águas.
Anjos, sim, de terra, que segredam
a argila dos nomes, o movimento azul
do ar. Na sua companhia eu sou o vento
e o meu hálito confunde-se com as suas vozes.
António Ramos Rosa
https://www.youtube.com/watch?v=twJblXo1Umw&feature=kp
https://www.youtube.com/watch?v=twJblXo1Umw&feature=kp
segunda-feira, 7 de julho de 2014
Restos
Debaixo da estrada de asfalto houve um
caminho de terra. Onde hoje passam automóveis, passaram
carroças puxadas por mulas. Onde o tempo se mede
em quilómetros, o tempo era contado pelo movimento
do sol no céu de onde caía um calor inclemente. E
debaixo do caminho de terra ainda houve uma via
de pedra, e quase se poderia dizer que a cada pedra
correspondeu a vida de um escravo. Por ali passaram
legiões que trouxeram, atrás delas, comerciantes
e juristas. E depois delas vieram os bárbaros, cortando
braços e cabeças por ócio e pressa. Nada disto se vê,
porém, quando se acelera para chegar mais depressa
à auto-estrada. E só o velho que se encosta a um muro,
olhando para sítio nenhum, conserva nas rugas do rosto
as memórias que se perderam.
Nuno Júdice
https://www.youtube.com/watch?v=1KgpoIwtwJs
domingo, 29 de junho de 2014
As metamorfoses da cigarra
É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista de um castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida... O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra... Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
- Já hoje ouvi a cigarra...
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho. Paciência. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa...Quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anodina e conseguida ascensão.
E cantava.
A primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.
- Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=XJSjm_YUxDo
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.
- Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar.
Miguel Torga
https://www.youtube.com/watch?v=XJSjm_YUxDo
domingo, 22 de junho de 2014
À chegada do verão
Abriu a janela.
O que sucedeu então foi
noutra manhã: o galo do quintal
do vizinho anunciou a chegada
do verão. A luz hesitante talvez
nem consiga romper a névoa.
De súbito
o grito do pavão rasgou o céu
e, azul, pela janela
entrou o mar.
Eugénio de Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=Fv0CU2ewz_A
quinta-feira, 12 de junho de 2014
Era uma filha
Era uma filha o que chorava
quem estava olhando sem olhar
com um olhar húmido ainda
desse teu ventre que é o mar
quem com a boca não falava
mas após mim há-de ficar
para apostar candidamente
a quem um dia perguntar
por este pai que lhe cantava
e a olhava com um olhar
prendido a ti e ao singular
olhar que tens, que é como o mar
Fernando Assis Pacheco
https://www.youtube.com/watch?v=9kmwY1Z3YNY
domingo, 8 de junho de 2014
Aquilo que eu não fiz
Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei
Não fui eu que gastei
Mais do que era para mim
Não fui eu que tirei
Não fui eu que comi
Não fui eu que comprei
Não fui eu que escondi
Quando estavam a olhar
Não fui eu que fugi
Não é essa a razão
Para me quererem moldar
Porque eu não me escolhi
Para a fila do pão
Este barco afundou
Houve alguém que o cegou
Não fui eu que não vi
Talvez do que não sei
Talvez do que não vi
Foi de mão para mão
Mas não passou por mim
E perdeu-se a razão
Todo o bom se feriu
Foi mesquinha a canção
Desse amor a fingir
Não me falem do fim
Se o caminho é mentir
Se quiseram entrar
Não souberam sair
Não fui eu quem falhou
Não fui eu quem cegou
Já não sabem sair
Meu sonho é de armas e mar
Minha força é navegar
Meu Norte em contraluz
Meu fado é vento que leva e conduz
sábado, 31 de maio de 2014
Das mais puras memórias: ou de lumes
Ontem à noite e antes de dormir,
a mais pura alegria
de um céu
no meio do sono a escorregar, solene
a emoção e a mais pura alegria
de um dia entre criança e quase grande
e era na aldeia,
acordar às seis e meia da manhã,
os olhos nas portadas de madeira, o som
que elas faziam ao abrir, as portadas
num quarto que não era o meu, o cheiro
ausente em nome
mas era um cheiro
entre o mais fresco e a luz
a começar era o calor do verão,
a mais pura alegria
um céu tão cor de sangue
que ainda hoje, ainda ontem antes de dormir,
as lágrimas me chegam como então, e de repente,
o sol como um incêndio largo
e o cheiro as cores
Mas era estar ali, de pé, e jovem,
e a morte era tão longe,
e não havia mortos nem o seu desfile,
só os vivos, os risos, o cheiro
a luz
era a vida, e o poder de escolher,
ou assim o parecia:
a cama e as cascatas frescas dos lençóis
macios como estrangeiros chegando a país novo,
ou as portadas abertas de madeira
e o incêndio do céu
Foi isto ontem à noite,
este esplendor no escuro e antes de dormir
.......
Hoje, os jornais nesta manhã sem sol
falam de coisas tão brutais
e tão acesas, como povos sem nome, sem luz
a amanhecer-lhes cor e tempos,
de mortos não por vidas que passaram,
mas por vidas cortadas a violência de ser
em cima desta terra sobre outros mortos
mal lembrados ou nem sequer lembrados
E eu penso onde ela está, onde ela cabe,
essa pura alegria recordada
que me tomou o corredor do sono,
se deitou a meu lado ontem à noite
.......
E todavia os tempos coabitam
E o mesmo corredor dá-lhes espaço
e lume
Ana Luísa Amaral
https://www.youtube.com/watch?v=DcKMl7ZCfl8
domingo, 25 de maio de 2014
O país do amor
O amor é um país para onde vou
todos os dias. Mesmo
que não pense no amor e que não ame,
ou que as nuvens fluam no vazio e o ar
fique suspenso da secura,
o amor é o meu país - que nunca deixo
e onde as rosas da memória
se tingem sempre que respiro.
O meu país de origem, e, com certeza,
o da chegada ao fim - quando a vida
se estilhaça em átomos vazios, só essa
ressurreição me torna clara.
Quando os espelhos me decidem que sou
outra, o rosto verdadeiro está no país do amor,
subindo à superfície. A casa
está cheia de lonjura e sons de bronze,
o mar está à procura e a terra deixou de respirar,
mas é no país do amor que eu sou quem sou.
A carne rebenta, o sangue corre,
a tinta do jornal torna-se pó, já ninguém fala
e nada mais existe: todos os dias
percorro este exercício de morrer, mas é o amor,
no seu país, que me reclama.
Isabel Cristina Pires
https://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0
Assinar:
Postagens (Atom)