domingo, 26 de janeiro de 2014

Abracadabra

               
                 
           
                 
                     O conhecimento
                     do poder oculto da palavra
                     tinha-se perdido há muito.
                     Sabia-o.
                     Ali, frente à porta bloqueada,
                     ciente demais do que pretendia
                     e da impossibilidade de o alcançar,
                     desistia, aceitava o destino.
                     Resignado, olhou pela última vez
                     o obstáculo.
                     Sem convicção, avocou a palavra
                     esquecida, escarnecida
                     e murmurou,
                     como os avós que sabiam:
                     Abracadabra.

                     Silenciosamente a porta abriu-se.


                     João Alaiz
                     http://www.artbreak.com/JALAIZ


                       

domingo, 19 de janeiro de 2014

A Biblioteca de Babel


O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer as necessidades finais. 
Há quinhentos anos o chefe de um hexágono superior deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha quase duas folhas de linhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam escritas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século conseguiu-se estabelecer o idioma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Também acrescentou um facto que todos os viajantes têm confirmado: Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos. Destas premissas incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros. o tratado que Beda pode ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

Jorge Luis Borges
http://www.youtube.com/watch?v=w4xx7DeKdLU

domingo, 12 de janeiro de 2014

Para fazer o retrato de um pássaro


Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas.
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar
se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar
então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.

Jacques Prévert
(trad. de Eugénio de Andrade)
http://www.youtube.com/watch?v=4Of1u4JBpH8

domingo, 5 de janeiro de 2014

Que coisa são as nuvens


Falaram-me de um jogo um bocado elementar que é utilizado nas escolas quando se quer introduzir a questão das escolhas éticas. Existe um navio que se está a afundar e que transporta dez tripulantes. Ao lado, está um providencial bote salva-vidas pronto para ser posto em funcionamento mas onde infelizmente não cabem todos. O bote só comporta sete pessoas. Urge, por isso, determinar quem tem lugar ali. Tarefa bem dramática!
Chamou-me a atenção um dado que os investigadores detetam. Quanto mais jovens forem os alunos a quem se apresenta o jogo, mais previsível se torna a escolha seguinte: se entre os tripulantes do navio estiverem avós, eles são dos primeiros a ser salvos. E a gente pergunta: porquê os avós? O que é uma avó ou um avô no percurso de uma vida, quando, à maneira das sementes, mergulhamos no demorado processo de germinação ou iniciamos as aprendizagens fundamentais? Que contributo indispensável é o seu? Porque sentem os mais novos que eles devem indiscutivelmente ser salvos?
Os avós são mestres de uma arte esplêndida e rara: a arte de ser. Os avós sabem tornar um mero encontro quotidiano numa apetitosa celebração. Sabem olhar e olhar-nos sem pressas, vendo-nos esperançosamente mais adiante. Sabem dar valor às coisas de nada. Nunca consideram que quando se entretêm connosco estão a perder tempo, muito pelo contrário. Sabem que o amor dá-se bem com essa com essa gratuita condivisão. Os avós caminham a nosso lado sem pressa. Têm tanto de distante como de próximo no arco do tempo. Têm uma sabedoria que se expressa por histórias calorosas e não por conceitos. Têm uma memória que nos parece inesgotável, cheia de aventuras, de bagatelas e de detalhes para divertir. Têm armários carregados de objetos (alguns incompreensíveis) que nos põem a sonhar. Apresentam-nos a gostos e a sabores que passamos a identificar com eles. Os avós já foram muitas vezes aos lugares onde nos levam pela primeira vez. Chamam a atenção para coisas incalculáveis como a forma de uma nuvem ou a cor diferente que ganham as folhas. Ensinam-nos com serenidade, colocando-se a nosso lado. Nunca acham despropositada a fantasia, nem os medos, nem o mimo. Têm o sentido das pequenas coisas e colos onde cabem as grandes. Amparam os nossos desequilíbrios com o corrimão invisível e seguro do seu afeto, disponíveis degrau a degrau, Adivinham o que não dizemos sem se confundirem com a nossa confusão. Quando não estão connosco, pensam em nós, repetem aos amigos as frases que dissemos, disputam-nos, orgulham-se de coisas parvas, como o modo como sorrimos ou respiramos. Penso que se sentimos tão intensamente que os devemos salvar é porque percebemos, desde muito cedo, que somos salvos por eles.

José Tolentino Mendonça
http://www.youtube.com/watch?v=kGvY4tqcgUQ