domingo, 30 de março de 2014

Passagens


Eduardo
As mães são jovens e belas, têm cabelos brilhantes  e um corpo flexível e perfeito, de cintura fina e ventre liso

Madalena
que depois vai crescer e ficar inchado e redondo, elas caminharão alegres e triunfantes como se empurrassem o mundo à sua frente,

Marta
caminharão com pernas ágeis que depois se afastam um pouco ao andar e ficam inchadas do peso que carregam, mas elas não se importam de se sentir desastradas e disformes, estão alegres e orgulhosas, como se trouxessem dentro uma estrela.

Madalena
São dias felizes, porque são dias de espera, chamamos a esse tempo estar de esperanças.

Eduardo
Tudo acontece porque elas disseram sim. Podiam ter dito não, mas disseram sim

Hugo
e então começamos a nascer por dentro delas, pelos meses adiante, pouco importa se é verão ou inverno, primavera ou outono, crescemos suavemente, enrodilhados, até preencher todo o lugar que havia no seu corpo,

Joana
e quando se tornar pequeno e deixarmos de caber nele somos empurrados para exterior, através de uma passagem estreita, onde mal cabia a nossa cabeça, somos forçados a sair pelo meio das suas pernas afastadas e cá fora fazia frio e era desconfortável, e por isso gritámos, enquanto o ar nos enchia a boca e os pulmões, e nos sentimos sufocados de repente.

Madalena
E depois estávamos de novo sobre um território familiar, um ventre, agora experimentado do lado de fora, e tínhamos de respirar para estar vivos, sentíamos frio, náusea, desconforto, estranheza, anestesiados no entanto pelo sono, porque felizmente dormíamos quase sempre, excepto quando uma sensação dolorosa nos abria a boca num grito, começávamos a conhecer a dor, embora ela não tivesse nome, todo o corpo se contraía em carência, mas no momento do desespero encontrávamos o seio que procurávamos, o mundo estava lá, à medida do nosso desejo e da nossa fome.

Marta
E assim as mães vivem connosco e através de nós o processo de nascer, o momento brutal e deslumbrante que rebenta o seu corpo e o mundo em que viviam antes, e as torna, e ao mundo, noutra coisa diferente.

sábado, 22 de março de 2014

Leonardo da Vinci


Na ocasião, Ludovico Sforza apenas decidiu que, durante algum tempo, os múltiplos talentos de Leonardo da Vinci deveriam ser igualmente apreciados fora do palácio e recomendou-lhe uma visita ao Prior de Santa Maria delle Grazie, que vivia nas imediações e andava à procura de um artista para pintar uma parede, ainda em branco, no refeitório do Priorado.
Consequentemente, o trabalho que Leonardo da Vinci executaria nessa parede seria a Última Ceia, em que gastou três anos da sua vida, utilizados não tanto a trabalhar no projecto, mas utilizando-o como subterfúgio. É uma coincidência feliz que o prior lhe tenha dado, como assunto principal daquela que virá a ser a sua maior realização pictória, o tema da sua predilecção: a comida.
Matteo Bandelli conta que, durante o primeiro ano da sua comissão, a actividade de Leonardo da Vinci se resumia a sair do palácio ocasionalmente e a dirigir-se ao refeitório de Santa Maria delle Grazie, para contemplar durante horas a parede cuja pintura lhe tinha sido confiada. No segundo semestre de 1495, solicitou ao prior que, num espaço tão vazio, lhe colocasse uma mesa comprida, repleta de comidas e vinhos. As visitas de Leonardo da Vinci passaram então a ser diárias, fazendo-se acompanhar pelos seus discípulos e ensaiando várias disposições antes de começar a pintá-la. Por volta da Páscoa de 1495, o prior descrevia a Ludovico a sua perplexidade perante o comportamento do pintor:
Meu Senhor, já decorreram mais de doze meses desde que me enviastes Mestre Leonardo da Vinci para executar esta encomenda, e em todo este tempo não deixou uma única marca na nossa parede. E em todo o tempo as adegas do Priorado sofreram profundo desgaste, estando agora praticamente secas, pois Mestre Leonardo da Vinci insiste em provar todos os vinhos até encontrar o ideal para a sua obra-prima, recusando-se a trabalhar noutros termos que não estes. E em todo este tempo os meus frades passam fome, pois Mestre Leonardo da Vinci põe as nossas cozinhas dia e noite ao seu serviço, preparando misturas que diz serem iguarias necessárias à sua mesa.
Raymond Perault, bispo de Gurk, cerca de nove meses mais tarde, descreveu a experiência (confirmando o que o Prior tinha escrito a Ludovico Sforza) numa carta aos seus superiores em Innsbruck:
Mestre Leonardo da Vinci desenhou, na sua parede, um esboço com meia dúzia de colunas e o contorno de uma mesa e em baixo construiu uma plataforma com uma mesa comprida; para esta mesa são trazidos jarros de vinho e comida pelos seus vários ajudantes (e eu imaginara que tinham por função misturar as cores) que Mestre Leonardo da Vinci contempla e rearranja antes de os desenhar, convidando, finalmente, todos os presentes a comer e a beber.
Por fim (apesar das centenas de esboços que fizera dos diferentes alimentos), Leonardo da Vinci acabou por optar por pequenos pães, puré de nabo e postas de enguia. Talvez a chave para a grandeza da pintura resida na simplicidade e parcimónia dos alimentos escolhidos. Seja como for, depois de ter tomado esta decisão, dedicou os últimos três meses da sua comissão a pintar os comensais.

Shelag e Jonathan Routh
http://www.youtube.com/watch?v=E0nRc0KKVr4


domingo, 9 de março de 2014

Auto-elogio

                       

                            Vá, diz que nunca pisaste uma formiga
                            sem logo sentir o luto dos remorsos subterrâneos
                            das cidades em crepes.

                            Diz que só foste infame em becos pessoais
                            e nunca manchaste os dedos
                            na recusa de desfraldar bandeiras.

                            Vá, convence as pedras, os bichos e as cores
                            de que sempre emprestaste os olhos
                            ao incêndio do nascer do dia
                            - meu triste herói-de-merda mentiroso,
                            tão feliz de trazer no coração a dor do mundo
                            (do tamanho do peso de uma flor).

                            José Gomes Ferreira
                            https://www.youtube.com/watch?v=xf1YgcE7rmc

domingo, 2 de março de 2014

O som da água

                           

                             
                              O som mais belo é o som da água que corre.
                              O ruído da água, a explicação da água
                               na casca das pequenas pedras, a livrá-las
                               da mancha de não serem. E as pedras
                               transformam-se nesse som, devolvendo
                               a própria escuridão para trás do tempo.
                               É isso a água que corre, essa
                               luz de liberdade para sempre.
                               Essa explosão de para sempre
                               e nunca.

                               Isabel Cristina Pires
                               http://www.youtube.com/watch?v=e9RS4biqyAc