domingo, 27 de dezembro de 2015
O fósforo na palha
Choro
como um seixo. Reconheço a ferida
que o meu peso marca sobre a areia,
sulco inútil. O vento
limpa a duna, cobre
o eco do meu rastro.
Como um seixo! Se ao menos
uma criança me erguesse e me guardasse
no bolso do babeiro!
Egito Gonçalves
(escultura de Rui Chafes)
https://www.youtube.com/watch?v=FtrBUuVzpMY
sábado, 19 de dezembro de 2015
Os Girassóis de Van Gogh
Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas.
Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.
E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis de Van Gogh.
Manoel de Barros
domingo, 13 de dezembro de 2015
Confidências
Senta-te ao meu lado, que eu vou contar-te a viagem que eu fiz. Dá-me a tua mão para que eu a conte bem!
Dei a volta ao mundo, fiz o itinerário universal. Tudo consta do meu diário íntimo onde é memorável a viagem que eu fiz desde o universo até ao meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu próprio peito e defendido pelo meu próprio corpo.
Durante a viagem encontrei tudo disposto de antemão para que nunca me apartasse dos meus sentidos. E assim aconteceu desde aquele dia inolvidável em que reparei que tinha olhos na minha própria cara. Foi precisamente nesse dia inolvidável que eu soube que tudo o que há no universo podia ser visto com os dois olhos que estão na nossa cara. Não foi, portanto, sem orgulho que constatei que era precisamente por causa de cada um de nós que havia o universo.
E assim foi que todas as coisas que a princípio me pareciam tão estranhas começaram logo desde esse dia inolvidável a dirigirem-se-me e a interrogarem-me, quando ainda ontem era eu que lhes perguntava tudo. Ontem, cada um de nós viajava por todas as partes do universo, com aquele desejo íntimo de se encontrar, e se a viagem demorou mais do que devia é que não seria fácil acreditar imediatamente que cada um de nós estava, na verdade, em todas as partes do universo.
Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante?
Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante?
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo.
Almada Negreiros
(pintura de Almada Negreiros)
https://www.youtube.com/watch?v=dZknZcVtGr8
Almada Negreiros
(pintura de Almada Negreiros)
https://www.youtube.com/watch?v=dZknZcVtGr8
sábado, 5 de dezembro de 2015
Com licença poética
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado p´ra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição p´ra homem
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado
( Pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=cs4d3QOHHsE
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