domingo, 30 de junho de 2019

Cheio de Luz


O velho teve de admitir que estava cego. Podia caminhar, orientado pelos murmúrios, pelas más respirações. Porém, não conseguia alimentar‑se nem com restos de pão nem com raízes. Embatia na gente acocorada. «Levai‑me até um ninho de lacraus», pediu então. Queria morrer depressa. Mas procurar um ninho de lacraus provocava uma espécie de avesso no caminho, um desvio, um desgaste inoportuno. Ninguém lhe deu ouvidos. Repararam que ele tinha os olhos brancos e temiam que os amaldiçoasse. Então andaram um pouco mais depressa, de maneira a que as palavras não os atingissem. O velho ainda atirou pedras imaginárias. «Levai‑me ao menos para a sombra», disse. Mas não havia sombras. E Tariq começou a recuar sobre os seus passos, acercando‑se do velho, mas sem perder de vista os caminhantes. «Eu torno‑te meu pai. Trato de ti.» Falava baixo e cheio de secura. Levou o velho pela mão, não por bondade, mas para ter alguém ligado a si. E chamou‑lhe Nuru, Cheio de Luz. E Nuru transformou‑se num bom guia.

Hélia Correia
Pintura de Graça Morais
https://www.youtube.com/watch?v=RWRBefVX5ec

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