quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Peniche


Muralhas do Forte de Peniche


Paredão


Nossa Senhora dos Remédios


Cabo Carvoeiro

Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municípios - por toda a parte transformaram terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interessantes: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um esplêndido cenário para o último acto da Tosca. 
Só me ficou uma impressão grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rés-do-chão, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherzinhas, sentadas do chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabeça e puseram-se a rir para mim...Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de -rosa...
Daqui até ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismático... A Senhora dos Remédios é escavada na rocha subterrânea,  junto a fragas enormes que mal se sustentam de pé e que os vagalhões assaltam formidavelmente. E no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando por mim. Atraem-me e fascinam-me.
                                                                         Agosto de 1919

Raul Brandão
https://www.youtube.com/watch?v=gKwsH-y0rUQ

domingo, 25 de agosto de 2019

Penela


Árvore tutelar

A ti me acolho
árvore tutelar da minha infância.
Conheço-te do tempo dos ninhos
quando descobri o mundo
na copa dos teus segredos
e senti no meu tronco
a seiva transbordante do teu corpo.
Por isso volto sempre ao teu regaço
para ver a lua, as estrelas, os pássaros
que pousam nos teus ramos
como os meus olhos em busca
do tempo aventuroso da raiz.

António Arnaut






                                
                               Castelo de Penela

                                        


                               Vista do castelo

                          
                     


                     Percurso da cascata da Pedra da Ferida





                               Percurso da cascata da Pedra da Ferida




                                Perto da cascata



                                           A cascata



                 Adeus a Penela


sábado, 24 de agosto de 2019

Autobiografia de Fernando Namora


A infância,então. A adolescência melancólica, a juventude dramatizada. Mas os anos longínquos quase se me esvaziaram. Talvez tivesse precisado de os esquecer. Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia - a ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira. Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no castanheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma ave. Tudo sons que davam mistérios às coisas.
Com o tempo e o desaparecimento das pessoas, acentuou-se o meu pendor para a solitude. Errava pelos montes, observando os moleiros e os pastores, decorava livros inteiros de poesia, recitando-os para mim próprio no quarto que dava para a rua da vinha.


                           BURGO

          Meu velho burgo dormindo
          meu berço de heras
          poeira húmida
          de secos orvalhos
          minha lembrança 
          de presságios não cumpridos
          meu regaço de penas
          minha brisa alada
          burgo meu cais
          donde não parto nem volto
          aceno de asa
          sem mastros de largada
          minha água 
          de sede crestada
          burgo meu destino
          de fugir e restar
          sem haver partido

          Fernando Namora
          https://www.youtube.com/watch?v=GoahOy1Olfo

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Mulheres

         

       Desciam da cruz 
       Como aves de negro.
       As asas abertas 
       Batiam soturnas
       Na cinza de névoa
       Das sombras noturnas
       E ousavam mistérios
       De deuses secretos.

        Mulheres ou bonecas
        Crianças ou velhas.
        No barro das telhas 
        A chuva caía.
        Caíam as folhas
        Doiradas e secas.
        Mulheres ou bonecas
        Desciam da cruz 
        Na noite vazia.

         Repetem-se os gritos
         Represos mil anos.
         Ecoam suspiros.
         Ninguém sabe o rosto
         Aos deuses tiranos;
         Formigas, bonecas
         De vozes tão roucas
         Correndo, sofrendo
         Voando, voando.

         Baloiçam-se negras
         De véus e de Dores,
         Nas asas de aviões
         Que cortam as cores
         Pregadas na cruz
         - Infâncias que foram
         De fadas e flores.

         Natércia Freire
         Pintura de Paula Rego
     https://issuu.com/camara_municipal_lisboa/docs/natercia_freire_issuu
        

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Romance do tempo inocente


Era um tempo de ritos no rito das estações.
Um dia atirei pedras às estrelas
joguei o meu pião no pátio do luar
rasguei as calças do vento parti os vidros da noite.

Nada sabíamos da guerra nesse tempo
nada sabíamos da fome e nunca 
reparámos no rosto magro dos meninos
que cheiravam aos caminhos no largo da velha árvore.

Nada sabíamos dos homens que viviam
do trabalho dos homens que não tinham casa.
Acreditávamos que não ter casa era ser livre.
Era um tempo de grandes gestos belos e gratuitos.

Havia o mar. Raparigas da terra da saudade.
Era um tempo de fruta e violinos
um tempo de ser nu nas águas quentes do verão.
Porque nós tínhamos a idade de não ter idade.

Manuel Alegre
Pintura de Nuno San-Payo
https://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As