Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu
refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta.
Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai,
parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente dá
por isso quando não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas
poças de chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o
verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em
baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e
gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas
quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo
de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as «terras», lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia
«reinar», e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos
carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que
sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um.
José Rodrigues Miguéis
https://www.youtube.com/watch?v=NiVmF4eMdTM
José Rodrigues Miguéis
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