4 horas da tarde
É neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se imaterializa e atinge a perfeição suprema. S. Jacinto das Areias, pintado de vermelho e envernizado de novo, revê-se no espelho límpido das águas. Adiante há um pinheiral na duna, pequenino e já misterioso. À direita, em diferentes gradações de roxo, o vasto acampamento das salinas estende-se muito ao longe até à serra. Azul, azul vivo, azul que a luz trespassa e estremece, azul que não tem limites. Também a terra se prolonga e o amplo panorama se torna irreal. Aqui a matéria não existe. As terras alagadas têm tanta transparência como a ria. Distingo árvores, mas as árvores são traços de cor diluída e nascem da água; adiante riscos de uma paliçada ou um pedaço de areia desvanecida... O que há é azul a jorros, uma vasta amplidão indistinta como num sonho, cheia de ar húmido e envolvida em luz carinhosa. As coisas são tão leves, que a luz as atravessa... Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das coisas, que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos aspectos de sonho translúcido à medida que a luz esmorece e o barco se desloca. Às oito horas estamos de novo perto da barra e o jorro que vem do mar parece lava fundida. O poente avermelha as areias e acende na água um rasto de estrelas.
Raul Brandão
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