Nunca dormi manhã fora,
acordavam-me os eléctricos matutinos
e com frequência os meus próprios versos também.
Arrancavam-me pelos cabelos ao edredão
e levavam-me para a cadeira,
e assim que limpava os olhos
obrigavam-me a escrever.
Preso com doce saliva
aos lábios de um momento único,
não pensava na salvação da minha mísera alma,
e, em vez da glória eterna,
desejava um instante breve
de prazer fugaz.
Os sinos elevavam-me em vão da terra,
eu agarrava-me a ela com unhas e dentes.
Estava cheia de perfumes
e mistérios excitantes.
Quando olhava à noite para o céu
não era o céu que procurava.
Horrorizavam-me, sim, os buracos negros
situados no limite extremo do universo
que são ainda mais terríveis
do que o próprio inferno.
Mas ouvi de repente o som de um cravo.
Era um concerto de Johann Sebastian Bach
para oboé, cravo e cordas.
De onde vinha aquela música?
Não sei, mas da terra não era.
Ainda que não tivesse provado vinho,
cambaleei um pouco
e tive de me agarrar
à minha própria sombra.
Jaroslav Seifert (tradução de Vasco Gato)
Pintura de Paul Klee "Ao estilo de Bach"
https://www.youtube.com/watch?v=TPw5TvDPRoc
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