domingo, 19 de março de 2023

A MESA:

A minha pátria

é esta sala que dá para a varanda,

e é também a varanda com as suas flores

que vão e vêm meses fora, e eu vejo luminosas

mesmo quando se tornam cor

de vento triste


A minha pátria

é a toalha branca que me cobre, são os pratos

que sustento todos os dias, os braços

que se encostam a mim,

até a água onde quase me afoguei,

por culpa distraída da mão que no meu corpo 

a colocou, mão insensata

esquecida de cuidar


Comecei por conhecê-la,

à minha pátria.

Quando era ainda a paisagem perfumada

das madeiras, irmãs de nascimento, a serração,

o ar coberto de minúsculos fios e pó

tão bem cheiroso, os dedos que depois me tomaram,

tábua larga, me afagaram

com plainas, o verniz, o brilho

tudo isso foi já a minha pátria: pradaria de insectos,

ventos brancos, a seiva viva que corria

nos meus veios, a água que eu bebia para sobreviver,

e que me protegia


Que a mão que agora aqui e sobre mim

se estende

se lembre desta inteira condição comum:

de reino igual viemos, para igual  reino

vamos, ela e eu


os átomos que me formam e fizeram 

podem ter sido os seus


Ana Luísa Amaral

Pintura de Di Cavalcanti

https://www.youtube.com/watch?v=pUlJ-3TuRnA


domingo, 5 de março de 2023

Mulheres




Ultrabiográfico

Que sexta-feira de estilhaços!
(na via-sacra é a paixão)
Se já morri foi nos meus braços
Por não haver ressurreição.

Cheguei a esta mitologia
Como os ciganos, pelo caminho.
Na minha humana eucaristia
Não há o pão. Só bebo o vinho.

Deixem ao céu a concordata
Com uma flor, se lhe apetece.
Mas não me mostrem santos de prata
Como quem mostra o que padece.

Para Jeová, sofro de mais.
Para o demónio, sofro de menos.
Prefiro os olhos dos animais
E o meu vestido de ver a Vénus.


Natália Correia
Retrato de Natália Correia por Carlos Botelho





Mulheres à beira-mar

Confundido os seus cabelos com os cabelos
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente
a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga,
feliz de ser tão verde.

Sophia de Breyner Mello Andresen
Retrato de Sophia por Maria Helena Vieira da Silva




Porque...

Porque tens nos olhos
o sol
e o mar

Porque tens nos olhos
o rio
e também

o riso
o fogo

Porque logo te chamam
de manhã
e a comida preparas para todos

Porque no ventre
semeias
os teus filhos...

Porque ceifas a fome
porque ceifas o trigo

Porque tratas os feridos
os perdidos
e os embalas nos braços sem razão
a não ser pela razão do teu carinho

Porque esperas os outros
no caminho
estendendo devagar as tuas mãos



Maria Teresa Horta
Pintura de Paula Rego



Maria Helena, Sophia e Agustina


Íamos nisso do meu primeiro encontro com o Arpad e a Maria Helena. Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal, e, por sorte, ninguém mais o ouviu senão nós três. Ele sabia que não ia acender rivalidades porque tínhamos diferentes artes. Modalidades, como se diz no Porto. O Carlos Carneiro, que era um snob com muita fantasia para agourar o mau gosto burguês, dizia que um dia o chamou um pedante tímido, que os há nas faustas ruas da cidade, e lhe confessou: "Eu também me dedico à modalidade". E deu em mostrar-lhe horrendas aguarelas, marinhas e não sei que mais. Pois nós não nos acotovelávamos na modalidade. Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia - e assim continuamos dentro do território demarcado, sorrindo, aplaudindo e permitindo ao génio a cumplicidade em que a emulação não mete o dente. A Sophia era um caso - uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso - incerteza apaixonada. Vieira era um caso - uma mulher justa, o que é extraordinário e incalculável. Por exemplo: eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.

Agustina Bessa-Luís
Retrato de Maria Helena Vieira da Silva por Arpad Szenes