(na via-sacra é a paixão)
Se já morri foi nos meus braços
Por não haver ressurreição.
Cheguei a esta mitologia
Como os ciganos, pelo caminho.
Na minha humana eucaristia
Não há o pão. Só bebo o vinho.
Deixem ao céu a concordata
Com uma flor, se lhe apetece.
Mas não me mostrem santos de prata
Como quem mostra o que padece.
Para Jeová, sofro de mais.
Para o demónio, sofro de menos.
Prefiro os olhos dos animais
E o meu vestido de ver a Vénus.
Natália Correia
Retrato de Natália Correia por Carlos Botelho
Mulheres à beira-mar
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.
Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.
Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu branco.
Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente
a virgindade de um mundo que nasceu.
O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.
E aos seus ombros cola-se uma alga,
feliz de ser tão verde.
Sophia de Breyner Mello Andresen
Retrato de Sophia por Maria Helena Vieira da Silva
Porque tens nos olhos
o sol
e o mar
Porque tens nos olhos
o rio
e também
o riso
o fogo
Porque logo te chamam
de manhã
e a comida preparas para todos
Porque no ventre
semeias
os teus filhos...
Porque ceifas a fome
porque ceifas o trigo
Porque tratas os feridos
os perdidos
e os embalas nos braços sem razão
a não ser pela razão do teu carinho
Porque esperas os outros
no caminho
estendendo devagar as tuas mãos
Maria Helena, Sophia e Agustina
Íamos nisso do meu primeiro encontro com o Arpad e a Maria Helena. Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal, e, por sorte, ninguém mais o ouviu senão nós três. Ele sabia que não ia acender rivalidades porque tínhamos diferentes artes. Modalidades, como se diz no Porto. O Carlos Carneiro, que era um snob com muita fantasia para agourar o mau gosto burguês, dizia que um dia o chamou um pedante tímido, que os há nas faustas ruas da cidade, e lhe confessou: "Eu também me dedico à modalidade". E deu em mostrar-lhe horrendas aguarelas, marinhas e não sei que mais. Pois nós não nos acotovelávamos na modalidade. Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia - e assim continuamos dentro do território demarcado, sorrindo, aplaudindo e permitindo ao génio a cumplicidade em que a emulação não mete o dente. A Sophia era um caso - uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso - incerteza apaixonada. Vieira era um caso - uma mulher justa, o que é extraordinário e incalculável. Por exemplo: eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
Agustina Bessa-Luís
Retrato de Maria Helena Vieira da Silva por Arpad Szenes
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