No caminho da ida, ainda com a luz do dia, os teus cabelos escuros, vistos de longe e de trás, faiscavam, por vezes, com os mesmos lampejos acobreados daquelas uvas pretas que pendiam, já maduras, de uma ou outra vinha ao longo da estrada.
Era com a Eva Gadner, garantes tu, o filme que nessa noite se exibia; e que nunca te sentiste, como nessa noite, tão deprimida diante de um filme. Tinhas ido para o balcão, eu para as últimas filas da plateia; não nos vimos sequer durante os intervalos. À saída passaste muito indiferente por mim - "Olá, boa noite"- , mas já eu tinha decidido, ao contrário do que estava combinado, não acompanhar os do meu grupo ao casino. O mais provável, vendo bem, era não arranjarmos boleia para o regresso; e de repente não me entusiasmava mesmo nada a perspectiva de ter de fazer, com os meus companheiros, e a exemplo do que amiúde acontecia, dez quilómetros a pé aí pelas três da manhã.
Minutos depois, ao desembocar na praça quadrangular onde pela manhã se vendia fruta, lá estavam vocês as quatro, formando um único bloco entre meia dúzia de vultos dispersos, a aguardarem a chegada da camioneta junto do edifício dos Bombeiros.
A camioneta chegava sempre, como desde sempre o sabíamos, por volta da meia-noite e quarenta; mas apenas à uma e dez - era a última carreira - é que pontualmente arrancava. Entretanto, ao longo de meia hora, ambas as portas escancaradas, aquela carcaça acolhia, na sua semiobscuridade, quem já a esperava e quem depois aos poucos ia chegando. Nem uma lâmpada se acendia no interior. Bocejos; ranger de molas; conversas a meia voz. Em noites mais húmidas, o bafo das respirações e embaciar os vidros das janelas.
Desta vez a noite não estava húmida. E havia já quase meia hora que vocês as quatro tinham entrado. na camioneta. Eu, ao contrário do que era costume, permanecia cá fora, no passeio, como se estivesse afinal à espera de alguém...
David Mourão-Ferreira (texto com supressões)
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