terça-feira, 28 de novembro de 2023

Os Justos

 




Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.

O que agradece que na terra haja música.

O que descobre com prazer uma etimologia.

Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.

O ceramista que premedita uma cor e uma forma.

O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.

Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.

O que acarinha um animal adormecido.

O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.

O que agradece que na terra haja Stevenson.

O que prefere que os outros tenham razão.

Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

 

José  Luís Borges

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Pinturas de Francesco Clemente

https://www.youtube.com/watch?v=dD5ZV8qz1P0

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

A Sentinela Francesa

Oh! Maldita guerra!
Como entrei em Lisboa e me achei na minha casa, realmente não sei. Sim, lembro-me de passar no Rossio, e vê-lo cheio de uma multidão horrível - toda a população dos arredores refugiando-se, na fuga aterrada diante do inimigo. Era um caos de carros, de gado, de mobílias, de mulheres, gritando; uma massa brutal e apavorada, redemoinhando sobre si mesma, clamando por pão, sob a chuva implacável.
Dias amargos! Todos os meus cabelos encaneceram.
E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira de Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários (...)
Mas de que vale agora pensar no que se poderia ter feito! O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Poderiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos Portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência (..)
Por mim todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os meus joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro - e faço-lhes  desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa!

Eça de Queiroz


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Memórias das guerras contra a França



A guerra, ganha uma vez, podia ganhar-se novamente agora, disse Januário. Ele, Duarte Augusto, já a ganhara vinte sete anos antes, naquela mesma Casa. Com astúcia, imaginação e audácia, ponderando tudo a seu tempo:
Começara pelas janelas, em que mandara pôr grades de ferro, e pelas portas e portões, reforçados por trancas e barrotes. Vieram a seguir as munições, que lhe custaram noites de vigília a preparar, porque se tinham esgotado, léguas em volta, os cartuchos, a pólvora e as buchas. Para os primeiros, remediava-se com o material da caça, mas teve de improvisar as buchas.
Rematados assim com buchas caseiras, dera a cada um dez cartuchos, e reservara trinta para si próprio. O bastante para uma primeira arremetida. As restantes munições ficariam escondidas, a salvo de um saque que era preciso também considerar possível.
Posto isto, diversificou os lugares onde guardava as moedas, enterrando boa parte dentro de panelas, nos canteiros, com precaução.
Seguiu-se a reserva dos mantimentos, na adega e no sótão.
Depois de tudo pronto, despediram-se da Vila, meteram-se na carruagem e fingiram ir-se embora: Encheram o carro de malas e caixotes vazios e lá se acomodaram com puderam, ao cair da tarde, o Picoto chicoteando os cavalos, os cães seguindo em baixo, trotando entre as rodas, como nos carros de ciganos. Mas logo deixaram os cães, os cavalos e o carro noutra propriedade e voltaram a pé, no meio da noite, e passaram vários dias com as janelas fechadas, à luz de velas.
E assim tinham escapado de todo o perigo, disse Duarte Augusto, assim ele salvara toda a família como Moisés no deserto, como um capitão de mar  alto o seu navio -
Ai que mentira, riu a Maria Badala, disse Benta. O velho Duarte Augusto conta tudo a seu modo, mas não foi nada assim:
Nessa altura o velho era novo e fechou-nos em casa com medo dos franceses, nós e uma cabra, que ficava na adega, para dar leite às meninas.
Era tudo um desespero, só se cozinhava quando havia vento, para não se ver o fumo subir da chaminé, e água também não havia, era preciso ir buscá-la à fonte, e só de noite, pouca de cada vez e às escondidas (...)

Teolinda Gersão (texto com supressões)
Fotos do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, Porto


Defesa da não-violência


Existe agora um novo cuidado: a paz.

Os soberanos que hoje se aconselham com seus ministros decidem, apenas por

sua vontade, se o grande massacre começará este ano, ou no próximo ano. Sabem

muito bem que todos os discursos deste mundo não impedirão, quando assim

decidirem, de mandar milhões de homens para o matadouro. Escutam com prazer

semelhantes dissertações pacíficas, encorajam-nas e delas participam.

Longe de serem nocivas, estas são, pelo contrário, úteis aos governos, porque

desviam a atenção dos povos e os afastam da questão principal, essencial: Deve-se 

ou não submeter-se à obrigatoriedade do serviço militar?

"A Paz será dentro em pouco organizada, graças às alianças, aos congressos,

aos livros e aos opúsculos. Neste ínterim, enverguem seus uniformes e fiquem 

prontos a, por nós, cometer e a sofrer violências", dizem os governos; e os doutos 

organizadores de congressos e os autores de memórias pela paz aprovam.

Assim agem e assim pensam os cientistas desta primeira categoria. Sua atitude

é que mais proveito traz aos governos e portanto a que mais os encoraja.

O ponto de vista de uma segunda categoria é mais trágico. É o dos homens aos

quais parece que o amor pela paz e a necessidade da guerra são uma terrível

contradição, mas destino do homem. São, em sua maioria, homens de talento, de

natureza impressionável, que vêem e compreendem todo o horror, a imbecilidade

e toda a barbárie da guerra; mas, por uma estranha aberração, não vêem e não

procuram nenhuma saída para esta desoladora situação da humanidade, como se

deliberadamente quisessem revolver a chaga.


Leon Tolstoi  (trad. de Celina Portocarrero)

Pinturas alusivas à invasão da Rússia por Napoleão:
“Batalha de Borodino”, 7 de setembro de 1812, por Louis Lejeune (1822); “O fogo de Moscou”, de Albrecht Adam; “Marechal Ney na retaguarda na batalha de Kaunas”, por Auguste Raffet (1812); “Retirada francesa”, de Illarion Pryanishnikov .



Poema da Terra Adubada


Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.

Por detrás das árvores escondem-se os soldados

com granadas de mão.

 

As árvores são belas com os troncos dourados.

São boas e largas para esconder soldados.

 

Não é o vento que rumoreja nas folhas,

não é o vento, não.

São os corpos dos soldados rastejando no chão.

 

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.

É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

 

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.

É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

 

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.

São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

 

Depois os lavradores

rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,

e a terra dará vinho e pão e flores

adubada com os corpos dos soldados.


António Gedeão

https://www.youtube.com/watch?v=m0GTEyE2r5k

Pintura de josé Luís Bardasano


A guerra

 Sermão nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, 1668

Assunto grande chamei ao deste dia (deixada por agora a segunda parte

dele), não só porque neste dia, com tão devidas demonstrações de alegria,

festejamos os felizes anos da Rainha sereníssima (que Deus nos guarde por

muitos), senão porque neste dia se cerra venturosamente aquele grande ano, tão

grande que nem Portugal o teve igual, nem o Mundo o viu maior. Os anos e os dias

do Mundo fá-los o curso do Sol; os anos e os dias dos reinos, fazem-nos as ações

dos príncipes. O Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os fazem e podem

fazer as ações(...)

As desconsolações gerais que padecia Portugal o ano passado e ainda na

entrada do presente, se atentamente as considerarmos, todas se reduzem a três: a

guerra, o casamento, o governo. Na guerra estava o povo aflito, no casamento

estava a sucessão desesperada, no governo estava a soberania abatida. E em

todas juntas? — O Reino perigoso e vacilante (...)

Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos anos, tão

universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa desconsolação! É a guerra

aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais

come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que

leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um

momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade

composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não

padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro

o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre

não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não

tem segura a sua cela; e até Deus nos tempos e nos sacrários não está seguro. Esta

era a primeira e mais viva desconsolacão que padecia Portugal no princípio deste

mesmo ano. Mas que bem no-la consolou Deus com a felicidade da paz, de que nos

fez mercê!

Que de tempos costuma gastar o Mundo, não digo no ajustamento de qualquer ponto

de uma paz mas só em registar registar e compor os cerimoniais dela! Tratados

políticos, mas quantos degraus se hão de subir e descer, quantas guardas se hão de

romper e conquistar, antes de chegar às portas da paz, para que se fechem as de

Jano? E depois de aceitas, com tanto exame de cláusulas, as plenipotências; depois

de assentadas, com tantos ciúmes de autoridade, as juntas; depois de aberto o

passo às que chamam conferências, e se haviam de chamar diferenças; que tempos

e que eternidades são necessárias para compor os intricados e porfiados combates

que ali se levantam de novo? Cada proposta é um pleito, cada dúvida uma dilação,

cada conveniência uma discórdia, cada razão uma dificuldade, cada interesse um

impossível, cada praça uma conquista, cada capítulo e cada cláusula dele uma

batalha, e mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz, em cada gota de mar

se afoga, em cada átomo de ar se suspende e pára. Os avisos e as postas a correr e

cruzar os reinos, e a paz muitos anos sem dar um passo (...)

P. António Vieira

Pintura de Cândido Portinari

https://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0