Sermão nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, 1668
Assunto grande chamei ao deste dia (deixada por agora a segunda parte
dele), não só porque neste dia, com tão devidas demonstrações de alegria,
festejamos os felizes anos da Rainha sereníssima (que Deus nos guarde por
muitos), senão porque neste dia se cerra venturosamente aquele grande ano, tão
grande que nem Portugal o teve igual, nem o Mundo o viu maior. Os anos e os dias
do Mundo fá-los o curso do Sol; os anos e os dias dos reinos, fazem-nos as ações
dos príncipes. O Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os fazem e podem
fazer as ações(...)
As desconsolações gerais que padecia Portugal o ano passado e ainda na
entrada do presente, se atentamente as considerarmos, todas se reduzem a três: a
guerra, o casamento, o governo. Na guerra estava o povo aflito, no casamento
estava a sucessão desesperada, no governo estava a soberania abatida. E em
todas juntas? — O Reino perigoso e vacilante (...)
Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos anos, tão
universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa desconsolação! É a guerra
aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais
come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que
leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um
momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade
composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não
padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro
o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre
não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não
tem segura a sua cela; e até Deus nos tempos e nos sacrários não está seguro. Esta
era a primeira e mais viva desconsolacão que padecia Portugal no princípio deste
mesmo ano. Mas que bem no-la consolou Deus com a felicidade da paz, de que nos
fez mercê!
Que de tempos costuma gastar o Mundo, não digo no ajustamento de qualquer ponto
de uma paz mas só em registar registar e compor os cerimoniais dela! Tratados
políticos, mas quantos degraus se hão de subir e descer, quantas guardas se hão de
romper e conquistar, antes de chegar às portas da paz, para que se fechem as de
Jano? E depois de aceitas, com tanto exame de cláusulas, as plenipotências; depois
de assentadas, com tantos ciúmes de autoridade, as juntas; depois de aberto o
passo às que chamam conferências, e se haviam de chamar diferenças; que tempos
e que eternidades são necessárias para compor os intricados e porfiados combates
que ali se levantam de novo? Cada proposta é um pleito, cada dúvida uma dilação,
cada conveniência uma discórdia, cada razão uma dificuldade, cada interesse um
impossível, cada praça uma conquista, cada capítulo e cada cláusula dele uma
batalha, e mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz, em cada gota de mar
se afoga, em cada átomo de ar se suspende e pára. Os avisos e as postas a correr e
cruzar os reinos, e a paz muitos anos sem dar um passo (...)
P. António Vieira
Pintura de Cândido Portinari
https://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0
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