quarta-feira, 1 de novembro de 2023

A guerra

 Sermão nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, 1668

Assunto grande chamei ao deste dia (deixada por agora a segunda parte

dele), não só porque neste dia, com tão devidas demonstrações de alegria,

festejamos os felizes anos da Rainha sereníssima (que Deus nos guarde por

muitos), senão porque neste dia se cerra venturosamente aquele grande ano, tão

grande que nem Portugal o teve igual, nem o Mundo o viu maior. Os anos e os dias

do Mundo fá-los o curso do Sol; os anos e os dias dos reinos, fazem-nos as ações

dos príncipes. O Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os fazem e podem

fazer as ações(...)

As desconsolações gerais que padecia Portugal o ano passado e ainda na

entrada do presente, se atentamente as considerarmos, todas se reduzem a três: a

guerra, o casamento, o governo. Na guerra estava o povo aflito, no casamento

estava a sucessão desesperada, no governo estava a soberania abatida. E em

todas juntas? — O Reino perigoso e vacilante (...)

Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos anos, tão

universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa desconsolação! É a guerra

aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais

come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que

leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um

momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade

composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não

padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro

o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre

não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não

tem segura a sua cela; e até Deus nos tempos e nos sacrários não está seguro. Esta

era a primeira e mais viva desconsolacão que padecia Portugal no princípio deste

mesmo ano. Mas que bem no-la consolou Deus com a felicidade da paz, de que nos

fez mercê!

Que de tempos costuma gastar o Mundo, não digo no ajustamento de qualquer ponto

de uma paz mas só em registar registar e compor os cerimoniais dela! Tratados

políticos, mas quantos degraus se hão de subir e descer, quantas guardas se hão de

romper e conquistar, antes de chegar às portas da paz, para que se fechem as de

Jano? E depois de aceitas, com tanto exame de cláusulas, as plenipotências; depois

de assentadas, com tantos ciúmes de autoridade, as juntas; depois de aberto o

passo às que chamam conferências, e se haviam de chamar diferenças; que tempos

e que eternidades são necessárias para compor os intricados e porfiados combates

que ali se levantam de novo? Cada proposta é um pleito, cada dúvida uma dilação,

cada conveniência uma discórdia, cada razão uma dificuldade, cada interesse um

impossível, cada praça uma conquista, cada capítulo e cada cláusula dele uma

batalha, e mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz, em cada gota de mar

se afoga, em cada átomo de ar se suspende e pára. Os avisos e as postas a correr e

cruzar os reinos, e a paz muitos anos sem dar um passo (...)

P. António Vieira

Pintura de Cândido Portinari

https://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0


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