Aguarda-se em fila a vez para subir ao cimo da capela e lançar as cavacas
Guardo do Largo de São Gonçalinho, a forma tão carinhosa
como as gentes da nossa Beira-Mar tratam São Gonçalo, recordações imorredoiras,
daquelas que resistem a todos os acidentes de percurso. Morei lá na força da
minha vida, com a minha mãe e os meus irmãos, no n.º 1 da Travessa de São
Gonçalinho, um primeiro andar que dava, e felizmente ainda dá, para o largo que
eu dominava por duas janelas de guilhotina. Lá estudava, noite adentro, lá
pintava a roubar ao descanso, de lá partia para o meu trabalho de dia inteiro,
e lá ainda descobria horas para dar explicações.
Todos os moradores do Largo pareciam uma família, sempre com
um espírito de entreajuda verdadeiramente excepcional. Era o espírito cagaréu a
falar em pleno. Todos os vizinhos, nos dias da festa, colocavam guarda-chuvas abertos
do lado de fora das janelas de primeiro andar, logo pela manhã. As minhas
janelas eram as que estavam mais a jeito e os meus guarda-chuvas, ao fim do
dia, estavam ajoujados de cavacas. À noite, sempre que o sino tocava, lá ia eu
ver à janela o espectáculo das pessoas de todas as idades a correr atrás das
cavacas que do alto da capela eram atiradas para o terreiro.
A família do lado do meu pai Manuel era toda da Beira Mar. A
da minha mãe, da freguesia da Glória. Sou, pois, filho de uma simbiose difícil
já que, quando o meu pai, homem da Ria e do Mar, começou a namorar a minha mãe,
menina da freguesia “de lá de cima”, como se dizia então, sentiu alguma
animosidade pela parte dos mancebos ceboleiros. Nesses tempos que já lá vão,
dizem-me que chegava a haver cenas de pancadaria sempre que namoros semelhantes
se esboçavam. Esta ambiência única que então se respirava na nossa Beira
Mar marcou-me de forma
profunda para todo o sempre.
As pessoas da nossa terra e os seus
hábitos mudaram muito. Confesso que tenho saudades do tempo em que se corria
toda a Beira Mar sem ver uma única porta fechada à chave, tudo no trinco e fé
em Deus, sem um único agente da autoridade a fiscalizar as ruas, porque tal era
desnecessário e até insultuoso para os cagaréus.
O tempo passa mas essa fé em São Gonçalo só tem aumentado. Bem
escreveu o saudoso poeta aveirense Amadeu de Sousa:
Dos santos todos de Aveiro,
Desta terra, deste céu,
S. Gonçalinho é sem dúvida
O santo mais cagaréu.
São Gonçalo é bem um santo que os aveirenses foram
construindo à sua medida, transformando-o em pessoa de família com quem todos
se sentem à vontade e a dialogar.
Há quem diga, pela devassa da História, que o Santo nunca
terá existido… E até há quem se pergunte se “São Gonçalo não terá sido uma
invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito”. …É com estas
palavras que o padre Amaro Gonçalves se questiona sobre o assunto.. Mas facto é
que existe um testamento de uma tal Maria Johannis, datado de 18 de Maio de
1279, legando os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Supõe-se que o
santo terá morrido a 10 de Janeiro de 1259, portanto vinte anos antes desse
legado à Igreja de seu nome. Segundo o Flos Sanctorum de 1513, Gundisalvus, ou
Gonçalo, “nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e
frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado
pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso,
vendo-se desapossado do seu benefício, prosseguiu um caminho de busca interior
já anteriormente encetado; depois foi a experiência da vida eremítica, a
pregação popular…, e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se
faria dominicano”.
No dia 10 de Janeiro, entre os anos de 1682 e 1687, o nosso
grande jesuíta Padre António Vieira, na cidade brasileira de Bahía, proferiu um
brilhante sermão, belíssimo panegírico seiscentista, de recorte barroco, ao
nosso São Gonçalo. O brilhante orador, sempre agarrado à sua
fluência expositiva, refere alguns dos milagres do Santo. O do pão que faz
converter em carvão e voltar à alvura primitiva. O do amansar de uns touros bravos,
como se tivessem ensino de muitos anos. O dos cardumes de peixe que saltavam
aos pés do santo consoante sua ordem. O da água e do vinho que brotavam de
fontes que ele fez surgir nas pedras da ponte amarantina em construção, para
apagar a sede dos trabalhadores e lhes dar alegria na sua lide. E de tantos,
tantos outros que mantêm incólume., ainda hoje, a sua fama de santo milagreiro.
Desses milagres eu já tinha notícia, por leituras, quando
vivi na Travessa de São Gonçalinho.
Mas do seu espírito vingativo, foi lá que, à boca pequena,
fui sabendo de algumas histórias de castigos dados pelo Santo a quem se
atrevesse a desfeiteá-lo.
Como a queda do
Cajica quando estava empoleirado num escadote a pintar a capela e que, chegado
ao pé da imagem, lhe pôs uma “purisca” nos lábios, invectivando-o:”Tu não fumas
estipor?”.
Ou a cena do Mestre Zé que se viu aflito a sair a Barra de
Aveiro com a sua embarcação, só por se ter recusado a dar esmola ao Santo.
Ou ainda o roubo do relógio do Luís Pierres, em pleno
arraial, por igual recusa de esmola. E muitas mais.
Mas nunca consegui, nos anos sessenta, ao contrário do que
hoje acontece, ter uma descrição cuidada da célebre “dança dos mancos” que se
fazia, que se fez sempre, no maior dos segredos, pela noite dentro, na capela
de portas trancadas. Pessoas que eu sabia serem mordomos da festa e, portanto,
zeladores da capela, nela pernoitando para, afirmavam, tomar conta das pratas
que eram emprestadas para decorar os altares, indagados sobre a “dança”, não
tugiam nem mugiam. Uma vez pus o problema ao senhor Prior que me disse que
“isso” tinha sido proibido pelo senhor Bispo, para garantir o decoro na capela.
Mas que o espírito brejeiro das gentes da Beira Mar nunca deixou morrer a
“dança dos mancos”, com proibição ou sem proibição, isso para mim, hoje, não me
deixa dúvidas.
Nunca assisti a uma dessas danças dentro da capela. Mas já
assisti a réplicas executadas por ex-mordomos e, efectivamente, vê-los a dançar
com as suas macaquices e ouvi-los cantar as suas versalhadas marotas é de
morrer a rir.
Aliás, esta associação de São Gonçalo a estas danças não é
só verificável em Aveiro. Com a mesma natureza brejeira, as danças e bailes de
São Gonçalo aparecem sempre por toda a parte onde há festejos em sua honra.
O que é certo é que da fama de folião e casamenteiro o Santo
se não livra nos dois lados do Atlântico.
Num lado e noutro, São Gonçalo é especialista em casar
solteironas:
São Gonçalo d’Amarante,
Casamenteiro das velhas;
Por que não casas as novas,
Que mal te fizeram elas?
Num lado e noutro, São Gonçalo aparece-nos associado a uma
saudável folia…
Eu disse que os tempos mudaram muito a minha Beira Mar,
desde que eu a comecei a conhecer. Sem dúvida que sim. Então, a economia do
Bairro assentava na pesca do mar e do rio; no amanho das marinhas de sal; na
apanha do moliço que continuava a converter as areias estéreis em úberes terras
de pão; em alguma construção naval; no tráfego dos mercantéis que transportavam
materiais de construção e alimentos para todas as motas da Ria onde as
populações se ancoravam em pequenos povoados. E para todas estas actividades o
povo cagaréu solicitava a protecção do nosso Santo. São Gonçalinho até foi nome
de arrastão do bacalhau, levando a fé que nele depositavam os armadores e os
pescadores da nossa praça até aos mares da Terra Nova, da Gronelândia, da
Noruega...
Hoje, as pessoas da Beira Mar já não assentam as suas vidas
nesse tipo de actividades, por sua natureza tão aleatórias. Mas a verdade é que
o Bairro continua a ter características únicas que lhe conferem uma identidade
inconfundível. E tudo continuando à volta do Santo Cagaréu.
É certo que já não posso ir à casa dos meus avós paternos
comer da bacia a caldeirada que o meu avô Ti Luís Manco cozinhava em
banho-maria na panela de três pés, no borralho da lareira da cozinha de terra
batida, coberta de junco.
É certo tudo isso…
Mas também é verdade que os festejos de São Gonçalinho se
continuam a fazer todos os anos. Que as cavacas atiradas da Capela são objecto
de reportagens fotográficas e televisivas. Que a Confraria de São Gonçalo,
arregimentada pelo Confrade-Mor Carlos Souto, continua a manter acesa a chama
de um saudável aveirismo que Eduardo Cerqueira pregou e que Amadeu de Sousa
cantou nos seu versos, defendendo as nossas tradições, sempre assentes na nossa
tradicional tolerância e no mais escrupuloso respeito pela liberdade.
Cheira-me, depois disto tudo, que o maior milagre que o
nosso São Gonçalinho de Aveiro nos fez foi o de ter eliminado as pontes que,
tempos idos, separavam os ceboleiros dos cagaréus, permitindo que, com as
nossas diferenças, saibamos fazer maior o amor que todos sentimos por esta
terra que nos viu nascer ou quisemos fazer nossa.
Gaspar Albino (texto com supressões), 25 de
Novembro de 2006
https://www.youtube.com/watch?v=hbrU28gX2oQ