domingo, 7 de janeiro de 2024

Desabafos de dois artistas

Pintura de Menez       





Pintura de Júlio Pomar




      CARTA DE POMAR  (01/11/1079)

Querida Menez

Disse-me a Paula que estavas a pintar muito e fiquei tão contente! 
Penso em ti muitas vezes e se não escrevi já, não foi por preguiça, foi por não saber: há coisas que a gente não sabe como dizer. 
Depois, tenho andado ou nem tanto com a borda debaixo de água (em recordações do meu avozinho marinheiro!). Não faças caso, de vez quando dá-me isso, como a toda a gente. E como a toda a gente, passa. Tenho estado a pintar muito devagar. Desde que vim só terminei um quadro, vê lá! e não gosto dele. Passo que tempo a pintar um bocadinho e depois destruo tudo.
Estou na fase de fazer num quadro muitos quadros uns em cima dos outros. O que não seria desastre se não houvesse assim compromisso de exposição a curto prazo. Se calhar é por isso mesmo, detesto datas e compromissos.
 

      CARTA DE POMAR (sem data)

Querida Menez, como eu percebo o teu sos zinho. Sozinhos estamos por condição que não escolhemos (ou talvez tivéssemos escolhido?) e a vontade de mandar um grande SOS por ares e ventos agarra-nos quanta vez pela garganta e ficamos pendurados dela, ele não há quem entenda. Entende-se a gente, mesmo que seja só pela metade (que mania da proporção!) pela via (reduzida?) destas escritas que os aviões ainda demoram mais; espero bem que quando esta carta chegar já tenhas recuperado (...)


      CARTA DE MENEZ (sem data)

Querido Pomar

Estou tão aflita porque não consigo acabar uma tela que seja - vou até certa altura e depois quando é preciso escolher mesmo não sou capaz, estrago tudo e lá fica outra tela inutilizada. Estive aqui dias seguidos (depois daquele domingo em que estive a pintar todo o dia e que pela primeira vez as coisas iam acontecendo bem e que me deu uma verdadeira vontade de pintar) muitas horas e dias agarrada a uma tela grande que teve vários caminhos, todos eles poderiam ir ter aonde eu queria mas todos eles obfusquei por falta dos souffles vitaux et manquer le souffle pour un peintre c'est le signe même d'un peintre médiocre. Estou aterrada, porque se não consigo pintar preferia deixar de existir.
O estado que é preciso para pintar (para mim) feito de coisas contraditórias: saber conter-se e tactear com cuidado e ao mesmo tempo ser espontâneo e pensar sem pensar, arriscar-se, mas dentro dum ritmo que abrange a contenção no mesmo vaivém que acontece com a tela: parte do quadro vem de lá, parte vem de nós ou nós somos o instrumento através do qual ele se vai fazendo - se eu não estou límpida, avec le coeur pur e como que com toda a minha alma levantada como os crentes em frente de Deus, mas se estou como agora... não vale a pena dizer como é mas é como se tivesse um peso tão grande no coração, na alma, nos sentidos, na imaginação que não consegue apanhar os souffles vitaux (...)
As pessoas não fazem ideia da coisa esquisita que é pintar, como é uma coisa íntima (a mais íntima de todas), como está ligada à nossa vida, mas não da maneira que eles pensam - é muito mais tortuosa essa ligação, mais clara e obscura ao mesmo tempo. Não se pintam as emoções, os sentimentos mas essas emoções e sentimentos servem de detonador ou de "energicador" para a partida como é preciso vento para as nuvens correrem depressa no céu - "exprimir-se a si próprio", "realizar-se" obscenas expressões e quanto erradas, o que mais é verdade é a tentativa de se chegar aos"segredos do universo" de os revelar (...)





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