terça-feira, 28 de maio de 2024

O Porto de Sophia

Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o Sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.

Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.

Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno.

Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos.

Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.

Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.

Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias.

Cidade onde sonhei as cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.

Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.

Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.

Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.

Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. […]

Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto da casa Andresen

https://www.youtube.com/watch?v=Op2klbYYLIk



A velha e livre cidade do Porto

A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. 
A grande pedra de ara da minha meninice, o Marão, dividia o mundo em dois. E na metade que se não via ficava esse Porto só adivinhado, mas donde vinha já, positivo e genuíno, o que ele tinha de seu: a sólida alimentação do corpo, conquistada a mortificação, e o fermento para levedar um pão mais alto.
Com os anos, essa primeira descoberta alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. Em Cedofeita, a continuar a cavadela deixada em meio pelos que me deram à vida, e na Sé, a olhar pasmado aquelas pedras lavradas, o negativo e o positivo harmonizaram-se na mesma visão reveladora. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. Trabalho duro, contínuo, com lágrimas amargas a refrescá-lo, e dias santos de libertação, com licença de fuga para as alamedas do intemporal.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espirital e feliz nos cumes das torres.
É uma admirável certeza esta que os anos nos dão de que a tendência de tudo é para o equilíbrio. O Porto, em muitos aspectos da sua vida, tem sabido encontrar esse equilíbrio. Por isso mesmo, quando tropeço num descrente da sua grandeza e da sua pureza, digo:
- Se as grandes inquietações sociais bateram a esta porta e entraram, se foi aqui dentro que estiveram cercadas as liberdades e romperam o cerco, se a junta da Patuleia se instalou nestas ruas, se o Trinta e Um de Janeiro explodiu na sua alma, se, enquanto se queimava o semelhante a torto e a direito em Lisboa, no Porto houve apenas um auto de fé, e se foi do seu coração que se ergueu a primeira voz contra a pena de morte em Portugal, - haja confiança! As ilhas, a miséria e o resto só duram enquanto um exame de consciência profundo não se faz.
E, sobretudo, que o Porto mantenha inteira, lusitana e pagã, a báquica festa de S. João!

Miguel Torga
Gravura de Roque Gameiro alusiva à revolta Maria da Fonte/Patuleia



Hino Maria da Fonte
Baqueou a tirania
Nobre povo, és vencedor,
Generoso, ousado e livre,
Demos glória ao teu valor.

Refrão:
Eia avante, Portugueses!
Eia avante, não temer!
Pela santa Liberdade,
Triunfar ou perecer!

Algemada era a Nação,
Mas é livre ainda uma vez;
Ora, e sempre, é caro à Pátria
O heroísmo Português.

Lá raiou a Liberdade
Que a Nação há-de aditar!
Glória ao Minho que primeiro
O seu grito fez soar!

Segue, ó Povo, o belo exemplo
De tamanha heroicidade:
Nunca mais deixes tiranos
Ameaçar a Liberdade.

Fugi déspotas! Fugi,
Vis algozes da Nação!
Livre, a Pátria vos repulsa,
Terminou a escravidão!

Letra composta por Paulo Midosi, 1846

segunda-feira, 27 de maio de 2024

No Porto - (1893)


Há pequenos burgos acastelados em Espanha e na Itália, de composição talvez mais fantástica, mas não têm a variedade que a vastidão do Porto oferece, nem um rio correndo entre muralhas de penedos afeiçoados à marrã por ciclopes, nem a proximidade do mar sempre agitado, que além de lhe alargar o horizonte humedece-lhe a atmosfera, repassando-a de tons de pérola mimosíssimos. Em certas manhãs os efeitos da neblina são incomparáveis; erguem-se muito mais alto os montes em que a cidade assenta; as igrejas, os edifícios públicos, tomam proporções colossais, dominados pela Sé, e pelo palácio episcopal que parece a ampliação do Vaticano; o movimento nas pontes é de monstruosos vultos; em baixo, no rio, os saveiros abrem caminho pela cerração, tripulados por gigantes; e os barcos "rabelos", com as suas formas estranhas, as arrogantes proas de combate, dir-se-ia saídos do espectaculoso cenário de alguma epopeia, ou conduzir o Lohengrino e o seu cortejo.
A torre dos Clérigos, recortada e enfeitada como um desmedido círio de fabulosa romaria, assoma ao cimo da rua íngreme, ameaçando despenhar-se por ela abaixo, entre os rolos da névoa que a enchem.
Mas tudo reveste incerto aspecto, aparências tão pouco sólidas, que em certos momentos quase se espera que uma rajada de vento arrase e desfaça para sempre aquele quimérico espectáculo...

Manuel Teixeira-Gomes
Aguarela de Júlio Resende

domingo, 5 de maio de 2024

Fumo


A luz da manhã limpou as sombras da noite,

num gesto de vassoura, atenta e rápida.

Agora, tudo é suave e transparente, como 

o frio seco que sacode os pássaros e as folhas.


Passo neste mundo natural que a manhã 

me oferece; e só falta um fio de fumo

dessas cinzas em que o dia aquece as mãos,

enquanto o vento não sopra a apagá-las.


Dia e noite juntam-se nesse fumo

em que o céu respira; e a sua linha

desenha no ar uma frágil fronteira.


Para um lado, o espaço sem limites

em que tudo permanece; para aqui, o breve

sentimento do eterno, antes que o fumo se dissipe.


Nuno Júdice

https://www.youtube.com/watch?v=WRIbIIVzB5M&t=125s