terça-feira, 28 de maio de 2024

A velha e livre cidade do Porto

A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. 
A grande pedra de ara da minha meninice, o Marão, dividia o mundo em dois. E na metade que se não via ficava esse Porto só adivinhado, mas donde vinha já, positivo e genuíno, o que ele tinha de seu: a sólida alimentação do corpo, conquistada a mortificação, e o fermento para levedar um pão mais alto.
Com os anos, essa primeira descoberta alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. Em Cedofeita, a continuar a cavadela deixada em meio pelos que me deram à vida, e na Sé, a olhar pasmado aquelas pedras lavradas, o negativo e o positivo harmonizaram-se na mesma visão reveladora. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. Trabalho duro, contínuo, com lágrimas amargas a refrescá-lo, e dias santos de libertação, com licença de fuga para as alamedas do intemporal.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espirital e feliz nos cumes das torres.
É uma admirável certeza esta que os anos nos dão de que a tendência de tudo é para o equilíbrio. O Porto, em muitos aspectos da sua vida, tem sabido encontrar esse equilíbrio. Por isso mesmo, quando tropeço num descrente da sua grandeza e da sua pureza, digo:
- Se as grandes inquietações sociais bateram a esta porta e entraram, se foi aqui dentro que estiveram cercadas as liberdades e romperam o cerco, se a junta da Patuleia se instalou nestas ruas, se o Trinta e Um de Janeiro explodiu na sua alma, se, enquanto se queimava o semelhante a torto e a direito em Lisboa, no Porto houve apenas um auto de fé, e se foi do seu coração que se ergueu a primeira voz contra a pena de morte em Portugal, - haja confiança! As ilhas, a miséria e o resto só duram enquanto um exame de consciência profundo não se faz.
E, sobretudo, que o Porto mantenha inteira, lusitana e pagã, a báquica festa de S. João!

Miguel Torga
Gravura de Roque Gameiro alusiva à revolta Maria da Fonte/Patuleia



Hino Maria da Fonte
Baqueou a tirania
Nobre povo, és vencedor,
Generoso, ousado e livre,
Demos glória ao teu valor.

Refrão:
Eia avante, Portugueses!
Eia avante, não temer!
Pela santa Liberdade,
Triunfar ou perecer!

Algemada era a Nação,
Mas é livre ainda uma vez;
Ora, e sempre, é caro à Pátria
O heroísmo Português.

Lá raiou a Liberdade
Que a Nação há-de aditar!
Glória ao Minho que primeiro
O seu grito fez soar!

Segue, ó Povo, o belo exemplo
De tamanha heroicidade:
Nunca mais deixes tiranos
Ameaçar a Liberdade.

Fugi déspotas! Fugi,
Vis algozes da Nação!
Livre, a Pátria vos repulsa,
Terminou a escravidão!

Letra composta por Paulo Midosi, 1846

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