quarta-feira, 31 de julho de 2024

Castro Marim







 





Sapal de Castro Marim


Castro Marim foi conquistada aos Mouros por D.Paio Peres Correia em 1242, mas devido à sua situação geográfica, continuou a sofrer os ataques dos inimigos o que provocou um forte decréscimo de população.
Para tentar resolver o problema, D.Afono III em 1277 e,  em 1282, D Dinis, seu filho, concederam-lhe imensos privilégios que proporcionaram o desenvolvimento da região.
D. Dinis escolheu Castro Marim para primeira sede da Ordem de Cristo, em 1319, mas em 1356, verificou-se a transferência desta Ordem para Tomar e a vila voltou a entrar em recessão. Em 1375, Castro Marim foi novamente entregue, por pouco tempo, à Ordem de Cristo, com os direitos e privilégios de outrora.
A partir do século XV, Castro Marim, devido à sua localização,  além de porto piscatório e comercial, desempenhou um papel importante na luta contra a pirataria e no apoio à navegação e às conquistas no norte de África. 
No séc. XVIII, diversas circunstâncias, entre as quais a grande destruição causada pelo terramoto de 1755 e a criação de Vila Real de Santo António, por iniciativa do Marquês de Pombal,  provocaram o seu declínio.

CASTRO MARIM

Lenda: O sapo e o mouro do castelo

Campo de numerosas batalhas, Castro Marim viu o seu castelo mudar de bandeira um par de vezes. Ora hoje moura, ora amanhã cristã, ali há também um alfobre de lendas de mouros encantados.Infelizmente a memória de muitas delas perdeu-se, sobretudo no que se refere a pormenores. E ainda bem que Ataíde Oliveira (1843-1915) entendeu coleccionar quanto pôde (e muito foi!) da tradição algarvia. Não fora ele e nada saberíamos de um certo sapo.

Que sapo? Pois um que havia no sítio da Espargosa, numa horta próxima de Castro Marim. Não era um sapo qualquer, era um mouro encantado. Muita gente da vila o viu, mas a partir de determinada altura, desapareceu. Tanto quanto se diz, desapareceu porque se quebrou, por fim, o seu encantamento. Porém, nessa mesma hora foram vistas, pela meia-noite, algumas mouras, pertencentes a outros encantamentos!

E também foram vistas ao meio-dia, que é a hora em costumam pentear os seus cabelos com pentes de ébano, decorados com embutidos naquele precioso metal. Houve quem as visse.

Por outro lado, os noctívagos de Castro Marim, quando lançam o olhar pelas arruinadas muralhas da sua vila, às vezes topam com um mouro a passear por lá. A lenda diz que o mouro era um homem riquíssimo e que em tempos protegeu uma família, ainda que as pessoas se tenham esquecido porquê! É o mouro do castelo e pronto.

Igualmente, registou Ataíde Oliveira, que no arco de Herveira, ainda nas imediações de Castro Marim, ao meio-dia e à meia-noite, mouros e mouras encantadas apareciam a quem por lá passava.

Uma proprietária daqueles sítios, certa noite, enfrentou-se com uma figura, a quem por diversas vezes atirou o seu punhal, sem lhe poder acertar. Por outro lado, a tal figura também não a conseguiu agarrar. Acabou esta por desaparecer e a senhora, ao chegar a casa, viu que tinha o corpo como se lhe tivessem batido! As pessoas até diziam que tinha sido uma luta da senhora, que se chamava, Ana Faísca, com um bicho monstruoso, por causa do desencanto de um mouro. A senhora não negava a luta, mas não aceitava a motivação....

Também para os lados das Vargens de Belixe, reza outra lenda, que ao meio-dia, se escutava, «ais» lamentosos que vinham do meio da terra.Muita gente lá terá ido ouvi-los, mas ninguém se deu ao trabalho de averiguá-lo! Contava-se também nos serões desta vila a história dos nove mouros encantados. O próprio Ataíde Oliveira diz que pediu a um amigo que lhe arranjasse os termos da história, mas ele não consegui descobrir nada, estava tudo esquecido! E o grande investigador algarvio atribui à acção dos frades a culpa da destruição da memória destas lendas.



Lenda do Azinhal

Diz a lenda que antigamente, no local que hoje se chama Azinhal, existia um nobre muito poderoso e que era dono de muitas terras e que esse nobre tinha uma filha muito bela e que estava habituada a satisfazer todos os seus desejos.
Um dia essa rapariga conheceu um jovem cavaleiro, que era também muito belo e por quem se apaixonou. Só que esse jovem jurara a ele próprio que nunca se havia de se apaixonar por ninguém e que queria ser livre para sempre.
Entretanto, o jovem não conseguiu resistir ao encanto da jovem e apaixonou-se mesmo por ela. Então, a rapariga, impôs-lhe como condição, antes de se entregar, que ele renunciasse à sua liberdade.
Então o cavaleiro, desesperado e sem saber o que fazer da sua vida, correu até um montado de azinheiras e ao chegar junto de uma árvore cravou um punhal de oiro no coração e morreu.
Diz-se ainda hoje que este jovem costuma aparecer durante a noite com o peito ferido e a sangrar e que também se ouvem suspiros e o choro de uma jovem.
A lenda diz também que os dois continuam a amar-se eternamente e que ela, sempre a chorar, vai fazendo, vai tecendo finas rendas para tentar estancar o sangue que sai do coração do seu amado.
Foi também a partir desta lenda que terão surgido as rendas de bilros que são também hoje muito conhecidas aqui na aldeia, que algumas mulheres ainda continuam hoje em dia a fazer.


Fonte Biblio: AA. VV., - Arquivo do CEAO (Recolhas Inéditas) Faro, n/a,




Tributo de Castro Marim a Paco de Lucía
A ligação de Paco de Lucía às raízes maternas perpetua-se no nome artístico de Francisco Gustavo Sánchez Gomes – Paco de Lucía - e nos álbuns de “Castro Marín” (1981) e “Luzia” (1998).
O memorial ao guitarrista concretizou-se em 2018, com a inauguração de Tributo a Paco de Lucía em Monte Francisco, de onde era a sua mãe, Luzia, era natural.




terça-feira, 16 de julho de 2024

O chico-espertismo

O chico-espertismo atravessa todo o tipo de subjectividade da nossa sociedade, sendo transversal a todas as classes, grupos, géneros, gerações. Na educação popular usa-se habitualmente um epíteto carinhoso para "provocar"ou "espicaçar" uma criança: "malandro" (ou "maroto"), com todas as variantes de "malandreco", "malandrete", etc. Epíteto formador, porque carinhoso e incentivador da acção que, ao mesmo tempo, se critica a brincar. A um garoto (mesmo a um bebé) lança-se um "seu malandro" quando se atribui malícia, dupla acção de fingir não enganar e enganar para obter um fim sem relação visível com as suas palavras ou acções - e assim se inscreve na criança um padrão indelével de comportamento e de relação ao outro.
Há chico-espertismo em todos os campos. Desde o automobilista que aproveita um espaço vago na bicha à sua frente e se precipita ultrapassando os outros para ganhar um ou dois lugares até às decisões ministeriais que fazem os "ricos" pagar mais IRS para compensar a "classe média" sacrificada - medida que é, nos seus efeitos, praticamente nula - toda a vida social, política e privada dos portugueses é um constante rodopio de golpes de chico-espertismo.
O chico-esperto não é o mentiroso, o grande escroque, o corrupto que se coloca claramente fora da lei. Pelo contrário, aproveita um espaço não-preenchido pela lei para cometer um acto quase legal, mesmo quando implica pequenas transgressões das normas jurídicas. O chico-esperto infringe a lei como se estivesse a cumpri-la, como se fosse uma boa partida sem consequência de maior. Porquê? Porque no fundo, a pequena transgressão que comete não faz dele um criminoso, apenas um "malandreco". À acusação que o pode tornar alvo da autoridade porque cometeu um delito opõe-se a força da conivência dos costumes, do "direito consuetudinário" que se formou na cabeça dos nossos compatriotas e que aprova secretamente o chico-espertismo. O chico-espertismo, por ser tão generalizado e penetrar tantos domínios, desliza facilmente para a corrupção e para a acção criminosa. Mas enquanto não chega aí, o chico-esperto goza do consenso conivente da maior parte da população, mesmo quando esta, publicamente, o condena. Por isso a sua acção ganha valor - o valor da sua esperteza. Esta necessita de descaramento, mas contém ousadia, temeridade e até coragem - valor enviesado, mas que todos os portugueses reconhecem.
Insisto: o chico-espertismo não é característico de determinada zona de comportamento, mas estende-se à relação inteira do sujeito com o outro. 

José Gil

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Actualidade do Zé Povinho

João Abel Manta

O fecho definitivo dos portões do Império africano, o regresso a Ítaca de tantos milhares de lusos dispersos em diaspórica presença pelo globo terráqueo, e até a nossa entrada na CEE e a nossa ulterior caminhada dentro dessa União Européia, bem como a nossa aparente diluição na identidade mais vasta dessa grande e ambiciosa comunidade de destinos e de sonhos não anularam o significado deste totem doméstico. De modo que lá anda ele, neste Portugal re-europeizado, num país de serviços, onde a União Européia paga aos nossos camponeses para se absterem de amanhar a terra, sempre apto a representar-nos, como nos tempos do seu pai Rafael, desmentindo os nossos alegados avanços ou progressos que o tornariam caduco e arcaico – na realidade, somos agora inconvictamente “europeus”, como outrora tínhamos sido “liberais” de acordo com a Carta outorgada e, mais tarde ainda, tínhamos fingido que éramos “republicanos”, vegetando, em seguida, durante quase meio século, manietados e amordaçados em Ditadura pura e dura, para nos acharmos, reconquistada a liberdade, fantasiados de “revolucionários” e “socialistas” (...) e agora, tendo passado do esmagador sector primário para um crescente e hoje omnipotente  sector terciário, nos sentimos nulos e vácuos e nesta “orla vã da praia” ocidental (Fernando Pessoa). Aí vai um número: 62,8 % da população activa no sector dos serviços, contra 4,1 % no primário, segundo o censo de 2001. Contudo, esta viragem histórica não lançou o Zé no desemprego simbólico, de modo que vamos continuar a ter no Zé Povinho, quer isso nos agrade ou não, o nosso melhor ( e único) verdadeiro auto-retrato como povo – aliás, povinho, já que nunca logrou ser, como prognosticara erradamente Ramalho Ortigão, “simplesmente povo”. Em suma, mesmo modernizado, europeizado, alfabetizado e terciarizado, livre do naufragado Império no qual, como o neurasténico Velho do Restelo dos Lusíadas, nunca acreditou, antes tomou sempre como fonte de infindáveis desastres e misérias -, o Zé persiste em assegurar o papel de estereótipo nacional, porquanto, na sua essência anímica, nas veras da sua alma mais íntima, nas suas entranhas mais ônticas e no seu recorte psicológico mais fundo, perene e arcaizante, ele continua a representar a mesma inércia, a mesma comunidade nacional sofredora, apática, descrente, nihilista e, só ocasionalmente, capaz de raríssimas explosões de cólera, sempre esporádicas e inconsequentes, expressas através de um gesto fálico brutal, próprio,

aliás, de quem não sabe falar, pois nunca se alfabetizou moral, cívica ou escolarmente o suficiente para encarregar gente mais dotada da palavra para exprimir as suas cóleras, justos queixumes ou legítimas aspirações. 

João Medina (texto com supressões)



"Manguito" de Carlos de Oliveira "apareceu" em frente do Palácio de Belém, em 3/4/2023. O Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,  autorizou que ficasse instalado no interior do Palácio, no jardim dos Teixos, enquanto decorre o processo  relativo à sua localização definitiva.



Zé Povinho

Eis em resumo a instrutiva história de portento tão admirável e prodigioso:
Zé Povinho começava apenas a ter-se nas pernas, quando os poderes seus pais, pondo-o à porta das instituições na franca direcção do olho da rua, lhe fizeram este memorável discurso:
"Zezinho vai passear. 
Nós, teus pais, depois de havermos cogitado com diurna e nocturna aplicação resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se te podia dar era a liberdade, pois que a liberdade é, como bem dizem os filósofos, o maior dos bens, superior ao próprio ouro.
Sê pois livre, e capacita-te de que vais muito mais bem convidado com a licença que para isso te conferimos do que com três ou quatro pintos que te metêssemos no bolso!
Escola não a tens, porque te poderia fazer mal o puxar muito pela cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que antes burro vivo, como tu estás, do que doutor morto, como tão frequentemente se tem visto.
Tenhas tu a graça de Deus Nosso Senhor, que é o que se pretende! e essa divina graça, lá está o reverendo pároco da tua freguesia encarregado da ta dar, se lhe pagares a côngrua.
Para manter o teu direito e defender a tua justiça encontrarás também os tribunais competentes, com advogados idóneos para discursarem a teu respeito pela gratificação de seis moedas, vestindo-te a túnica alva e luminosa da inocência ou amarrando-te à perna a grilheta do forçado, segundo sejas tu que dês as seis moedas, ou seja a parte contrária que as dê.
Enquanto ao governo incumbido de assegurar a manutenção de toda esta caranguejola, tão engenhosamente concebida para tua satisfação e recreio, serás tu mesmo que por tua mão o elegerás, metendo escrito no papel o nome daquele que destinares para poder executivo... Para o fim de te dar o papel com o nome do sujeito que hás-de meter e que nós nos encarregamos de confeccionar, lá estará um funcionário especial intitulado o Regedor.
Para continuares a gozar o sumo bem da liberdade que te outorgamos, tu não tens senão o pequeno incómodo de pagar tudo o que isto custa, e de dar os vivas do estilo, sempre que a ocasião se ofereça, ao príncipe, à real família e às instituições que vivem à tua custa.
Finalmente sempre que precisares do que quer seja, trata de o ganhar, porque ninguém te dá nada! Adeus, Zezinho, vai-te com Nossa Senhora!"
Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que nele depositaram os solícitos poderes do reino. Como desenvolvimentos de cabeça ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem.
Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez  de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo.

Ramalho Ortigão,  do "Álbum de Costumes Portugueses", 1888 
(texto com supressões)





Foi no jornal A Lanterna Mágica, a 12 de junho de 1875, que Rafael Bordalo Pinheiro  apresentou pela primeira vez a figura icónica do Zé Povinho, daí em diante e até à atualidade entendida como símbolo do povo português.
Este desenho apresenta uma metáfora à tradicional cena lisboeta do peditório para o Santo António. Assim, Fontes Pereira de Melo (Chefe do Governo Regenerador) está feito Santo António segurando ao colo o menino Jesus que é o rei D. Luís. À esquerda o Comandante da Guarda Municipal, de chicote, observa a cena.
O Zé Povinho (identificado através de inscrição, nas calças), de roupas esfarrapadas, é abordado por Serpa Pimentel, então Ministro da Fazenda, de quadro de ardósia ao ombro e prato de esmolas na mão, que lhe pede uma moeda para o “santo”. Pairando sobre a cena, figuras com corpo de abelha, de cartola, representam personalidades da política nacional.

Fonte: Museu Rafael Bordalo Pinheiro