O chico-espertismo atravessa todo o tipo de subjectividade da nossa sociedade, sendo transversal a todas as classes, grupos, géneros, gerações. Na educação popular usa-se habitualmente um epíteto carinhoso para "provocar"ou "espicaçar" uma criança: "malandro" (ou "maroto"), com todas as variantes de "malandreco", "malandrete", etc. Epíteto formador, porque carinhoso e incentivador da acção que, ao mesmo tempo, se critica a brincar. A um garoto (mesmo a um bebé) lança-se um "seu malandro" quando se atribui malícia, dupla acção de fingir não enganar e enganar para obter um fim sem relação visível com as suas palavras ou acções - e assim se inscreve na criança um padrão indelével de comportamento e de relação ao outro.
Há chico-espertismo em todos os campos. Desde o automobilista que aproveita um espaço vago na bicha à sua frente e se precipita ultrapassando os outros para ganhar um ou dois lugares até às decisões ministeriais que fazem os "ricos" pagar mais IRS para compensar a "classe média" sacrificada - medida que é, nos seus efeitos, praticamente nula - toda a vida social, política e privada dos portugueses é um constante rodopio de golpes de chico-espertismo.
O chico-esperto não é o mentiroso, o grande escroque, o corrupto que se coloca claramente fora da lei. Pelo contrário, aproveita um espaço não-preenchido pela lei para cometer um acto quase legal, mesmo quando implica pequenas transgressões das normas jurídicas. O chico-esperto infringe a lei como se estivesse a cumpri-la, como se fosse uma boa partida sem consequência de maior. Porquê? Porque no fundo, a pequena transgressão que comete não faz dele um criminoso, apenas um "malandreco". À acusação que o pode tornar alvo da autoridade porque cometeu um delito opõe-se a força da conivência dos costumes, do "direito consuetudinário" que se formou na cabeça dos nossos compatriotas e que aprova secretamente o chico-espertismo. O chico-espertismo, por ser tão generalizado e penetrar tantos domínios, desliza facilmente para a corrupção e para a acção criminosa. Mas enquanto não chega aí, o chico-esperto goza do consenso conivente da maior parte da população, mesmo quando esta, publicamente, o condena. Por isso a sua acção ganha valor - o valor da sua esperteza. Esta necessita de descaramento, mas contém ousadia, temeridade e até coragem - valor enviesado, mas que todos os portugueses reconhecem.
Insisto: o chico-espertismo não é característico de determinada zona de comportamento, mas estende-se à relação inteira do sujeito com o outro.
José Gil
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