O fecho definitivo dos portões do Império africano, o regresso a Ítaca de tantos milhares de lusos dispersos em
diaspórica presença pelo globo terráqueo, e até a nossa entrada
na CEE e a nossa ulterior caminhada dentro dessa União Européia, bem como a nossa aparente diluição na identidade mais
vasta dessa grande e ambiciosa comunidade de destinos e de
sonhos não anularam o significado deste totem doméstico. De
modo que lá anda ele, neste Portugal re-europeizado, num país
de serviços, onde a União Européia paga aos nossos camponeses para se absterem de amanhar a terra, sempre apto a representar-nos, como nos tempos do seu pai Rafael, desmentindo
os nossos alegados avanços ou progressos que o tornariam
caduco e arcaico – na realidade, somos agora inconvictamente
“europeus”, como outrora tínhamos sido “liberais” de acordo
com a Carta outorgada e, mais tarde ainda, tínhamos fingido
que éramos “republicanos”, vegetando, em seguida, durante
quase meio século, manietados e amordaçados em Ditadura pura
e dura, para nos acharmos, reconquistada a liberdade, fantasiados de “revolucionários” e “socialistas” (...) e agora, tendo passado do esmagador sector primário para um crescente e hoje omnipotente sector terciário, nos sentimos nulos e vácuos e nesta “orla vã
da praia” ocidental (Fernando Pessoa). Aí vai um número: 62,8
% da população activa no sector dos serviços, contra 4,1 % no
primário, segundo o censo de 2001.
Contudo, esta viragem histórica não lançou o Zé no
desemprego simbólico, de modo que vamos
continuar a ter no Zé Povinho, quer isso nos agrade ou não, o
nosso melhor ( e único) verdadeiro auto-retrato como povo –
aliás, povinho, já que nunca logrou ser, como prognosticara erradamente Ramalho Ortigão, “simplesmente povo”. Em suma, mesmo modernizado, europeizado,
alfabetizado e terciarizado, livre do naufragado Império no qual, como o neurasténico Velho do Restelo dos
Lusíadas, nunca acreditou, antes tomou sempre como fonte de
infindáveis desastres e misérias -, o Zé persiste em assegurar o
papel de estereótipo nacional, porquanto, na sua essência anímica,
nas veras da sua alma mais íntima, nas suas entranhas mais ônticas
e no seu recorte psicológico mais fundo, perene e arcaizante, ele
continua a representar a mesma inércia, a mesma comunidade
nacional sofredora, apática, descrente, nihilista e, só ocasionalmente, capaz de raríssimas explosões de cólera, sempre esporádicas e inconsequentes, expressas através de um gesto fálico
brutal, próprio,
aliás, de quem não sabe falar, pois nunca se
alfabetizou moral, cívica ou escolarmente o suficiente para encarregar gente mais dotada da palavra para exprimir as suas cóleras, justos queixumes ou legítimas aspirações.
João Medina (texto com supressões)
"Manguito" de Carlos de Oliveira "apareceu" em frente do Palácio de Belém, em 3/4/2023. O Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, autorizou que ficasse instalado no interior do Palácio, no jardim dos Teixos, enquanto decorre o processo relativo à sua localização definitiva.
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