sábado, 28 de setembro de 2024

As raízes


As raízes não falam. Não estão atrás. Nem no fundo.
As raízes vão à frente. Puxam-nos para a frente.
Por vezes engrossam nos sapatos. Cheias de suor e cobertas de bocas.
Trazem os olhos cheios de noite e de formigas
e têm o peso de séculos de pão e morte, de mãe e cal.
Projectam-se para o sol em latidos de sangue
mas caem num fundo de chumbo ou numa imóvel sombra.
Crescem, crescem sempre com as cabeças feridas,
orfãs de um horizonte soterrado em escamas.
Ascendem à garganta com os dentes da terra
mas sustêm o grito como se fosse um osso.
Que querem elas dizer? Alegria, árvores,
astros? Ou a intensa sombra do silêncio?
Elas impelem-nos para a frente, para um futuro antigo
de lágrimas adolescentes e marinhas,
de rios juvenis, de grandes luas
e o coração late em águas vivas.


António Ramos Rosa
Escultura "Árvore da vida" de Alberto Carneiro

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Quero um cavalo de várias cores

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?

Reinaldo Ferreira
Pintura de Amadeo de Souza-Cardoso

Cavalos Azuis, de Franz Marc


Passo para dentro do quadro dos quatro cavalos azuis.
Nem sequer chego a espantar-me por ser capaz de o fazer.

Um dos cavalos vem na minha direcção.
O seu nariz azul fareja-me levemente. Ponho o meu braço
em volta da sua crina azul, não para o prender, apenas
para estabelecer uma ligação.
Ele permite-me esse prazer.
Franz Marc morreu jovem, o cérebro rebentado pela metralha.
Eu preferia morrer a ter de explicar o que é a guerra
aos cavalos azuis.
Eles desfaleceriam, tomados pelo horror, ou simplesmente
não acreditariam nas minhas palavras.
Não sei como posso agradecer-lhe, Franz Marc.
Talvez o desejo de criar algo de maravilhoso
seja a semente de Deus que existe em cada um de nós.
Agora os quatro cavalos aproximam-se ainda mais,
inclinam as cabeças sobre mim
como se tivessem segredos a revelar.
Não espero que me falem, e eles não o fazem.
Se serem tão belos como são não é suficiente, o que
teriam eles a dizer?

Mary Oliver (tradução de Luís Filipe Parrado)
Pintura The large blue horses, Franz Marc