sábado, 28 de junho de 2025

Castelo Branco

Em  Castelo Branco todos os caminhos vão dar ao jardim do Paço Episcopal. O viajante pode, portanto, sem qualquer risco, demorar-se e perder-se por outros lugares, ir, por exemplo, ao castelo, que é uma escassa ruína, e ter aí o primeiro desgosto: está fechada, cercada e vedada a Igreja de Santa Maria, onde jaz o poeta João Ruiz de Castelo Branco. Queria o viajante, que tem muito destas fraquezas sentimentais, dizer à beira da pedra tumular aqueles maravilhosos versos que desde o séc. XVI têm vindo soando e de cada vez exprimindo, indiferentes ao tempo, a grande mágoa da separação amorosa: Senhora, partem tão tristes/ Meus olhos, por vós, meu bem,/ Que nunca tão tristes vistes/ Outros nenhuns por ninguém...
Aos poucos vai-se aproximando do jardim do Paço. Está ali o cruzeiro de S. João, pedra rendilhada, vazada como uma filigrana, onde, por mais que se procure, não se encontrará uma superfície lisa. É o triunfo da curva, do enrolamento, da eflorescência. 
O viajante passa ao lado do jardim, mas ainda não entrará. Vai primeiro ao museu(...)
O viajante entrou pelo rés-do-chão, sai pela escadaria do primeiro andar, que faz por descer o mais episcospalmente possível. E agora, sim, vai ao jardim passear. 
Não sabe o viajante se no mundo existe outro jardim assim. Se existe, copiámos bem; se é este o único, devia como tal ser louvado. Um único senão nele encontra: não é jardim para descansar, para ler um livro, quem entra tem de saber isso mesmo. Quando os antigos bispos aqui vinham, certamente trariam os fâmulos a cadeirinha para o repouso e a oração, apertando a respectiva necessidade, mas o visitante comum entra, dá todas as voltas que quiser, pelo tempo que quiser, mas sentar-se só no chão ou nos degraus do escadórios. Estas estátuas são magníficas, não pelo valor artístico, certamente discutível, mas pela ingenuidade da representação transmitida por um vocabulário plástico erudito. Aqui estão os reis de Portugal, todos reis de baralho que lembram o reizinho de Salzedas, e aqui está a patriótica desforra que consistiu em representar os reis espanhóis em escala reduzida: não podendo ser ignorados, apoucaram-se. E agora temos as estátuas simbólicas: a Fé, a Caridade, a Esperança, a Primavera e as outras estações, e aqui, neste canto, obrigada a virar-se para a parede, a Morte.

José Saramago

Cruzeiro de S. João

No jardim do Paço Episcopal

Estátuas de santos no jardim do Paço Episcopal

Estátuas dos reis de Portugal no jardim do Paço Episcopal

Um dos painéis de azulejos do jardim do Paço Episcopal

Vista do jardim

Muralhas do castelo 

A cidade vista a partir do castelo

Passeio nas muralhas

Muralhas 

Igreja de Santa Maria

Pôr-do-sol em Castelo Branco

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Idanha-a-Velha

Idanha-a-Velha é um museu a céu aberto, um dos sítios arqueológicos mais importantes da Península Ibérica, com projectos de investigação ligados a diversas instituições universitárias portuguesas e espanholas.
Encontramos muitos vestígios da presença dos romanos que aqui edificaram uma cidade, Civitas Igaeditanorum, no séc. I, mas também dos outros povos que posteriormente a habitaram.
No séc. VI, a cidade foi tomada por visigodos e suevos que então a baptizaram de Egitânia e a elevaram a sede episcopal, tornando-a um importante centro urbano. No séc.VIII foi invadida pelos árabes e a seguir reconquistada pelo rei de Leão.
Quando Portugal se tornou país, D. Afonso Henriques entregou-a à Ordem do Templo (Templários) para o seu repovoamento. Em 1319, D.Dinis, com a extinção dos Templários, incluiu-a na Ordem de Cristo, mas Idanha-a-Velha que tivera um importância equivalente a Mérida, entrou em decadência e deixou de ser freguesia no início do séc. XIX.

Torre dos Templários

Sé Catedral e ruínas romanas à esquerda

Frescos no interior da Sé Catedral

A Sé Catedral (séc.IV) foi sendo adaptada ao culto 
religioso dos vários povos que por aqui passaram

Pelourinho manuelino

Igreja Matriz (séc. XVIII)

Casa que ostenta a cruz da Ordem dos Templários 

Muralhas romanas

Ponte de origem romana sobre o rio Pônsul




Actuação dos SETE LÁGRIMAS na catedral de Idanha-a-Velha:

https://www.youtube.com/watch?v=4lMEGYijCLw


domingo, 22 de junho de 2025

Raia mágica

Existe uma linha mágica que percorre o interior do território português constituída por serras, penedos mágicos, águas santas, bosques de carvalhos e tradições vivas que dão um vigor mágico, um "outro mundo", completamente desconhecido do homem das sociedades modernas. Esse território interior que passa pelas terras mágicas das Idanhas na Beira Baixa, perto da fronteira, é a raia mágica.
Paulo Louçã cita as declarações de  um camponês destas terras de que muita coisa é de "antes do Dilúvio" e que a terra é purificada ciclicamente pelo fogo e pela água. É o tempo mítico das origens que emana das pedras sagradas.
A antropóloga Maria Adelaide N. Salvado  refere  que "(...)a forte luminosidade do seu céu, os longos e vermelhos crepúsculos do entardecer de estio nos seus largos e solitários horizontes, como que nos transportam ao começo dos tempos despertando, no mais recôndito de cada um de nós, uma paz e um profundo e vivíssimo sentimento de ligação e de adoração à natureza" 
Se percorrermos o trilho da aldeia de Monsanto até ao sopé do monte, encontramos a ermida românica de S. Pedro de-Vir-a-Corça que fica num local totalmente isolado, rodeada de sobreiros e de grandes pedregulhos. A capela em si, bem como todos os outros vestígios do seu passado, são absolutamente impressionantes e únicos. Sentimo-nos invadidos pelo espírito do lugar, o genius loci. Aqui respira-se Sagrado.









A Capela de S. Pedro de-Vir-a-Corça

Esta capela está ligada à lenda de um ermitão chamado Amador. 
Um dia, vendo-se uma matrona aflita com dores de parto, no seu desespero rogou que a criança mal nascesse,  fosse levada, por todos os demónios, pelos ares. Assim aconteceu no meio de um estrondo enorme.
O ermitão Amador, que ali vivia, apercebendo-se do que estava a acontecer, pediu a S. Pedro que lhe entregasse a criança e a libertasse do poder infernal. Foi atendido o santo homem, que começou então a preocupar-se, sem saber como havia de alimentar o menino. Como por milagre surgiu uma corça que passou a sustentar a criança com o seu leite, quatro vezes por dia. O menino cresceu, tendo-se feito anacoreta como o seu protector e foi o fiel companheiro do ermitão até à sua morte. Terá sido sepultado sob o altar da capela, bem com mais tarde o seu protegido.
O lugar tornou-se depois local de romagem. A festa de Santo Amador tinha lugar no dia 27 de Março. Era venerado por toda a Beira e procurado para a cura de maleitas, bastando para tal trazer terra da sua sepultura ao pescoço
Esta capela é conhecida por S. Pedro de-Vir-a-Corça, mas ao longo dos tempos o seu nome poderá ter passado de Vila para Vira e daí Vir, a forma actual.
 
Maria Manuela de Campos Milheiro

sábado, 21 de junho de 2025

Casa de Zeca em Monsanto



João Afonso, irmão de José Afonso,  refere no seu livro "Um olhar fraterno":
"1969 - Zeca faz o único negócio que se lhe conhece da sua iniciativa. Compra por 10 contos, mediante ajuste verbal e entrega de dinheiro, uma casa tosca e exígua em plena aldeia de Monsanto (sem transmissão de jure)."
Dizia Zeca sobre a razão da compra da casa:
"Porque às vezes é preciso pôr lá fora alguns camaradas e vai servir para os esconder e passarem para Espanha."
A Câmara de Idanha-a-Nova intervenciona recuperando o imóvel por apresentar condições de risco.



A partir do ano de 1968, a música portuguesa nunca mais seria a mesma. O álbum Cantares do Andarilho (1968) onde se encontra "Senhora do Almurtão" marca o concretizar de um projecto inovador que procurava criar uma canção de índole nacional alicerçada na tradição popular, fiel às raízes, mas ao mesmo tempo moderna. Este objectivo foi totalmente conseguido pois as pessoas continuam apreciar a interpretação destas canções que fazem parte do repertório de muitos artistas portugueses.



sexta-feira, 20 de junho de 2025

Senhora do Almurtão

 


No segundo domingo da Páscoa e 2ª feira seguinte (dia do feriado municipal) realizam-se  as Festas em honra de Nossa Senhora de Almortão. É um culto muito antigo que atrai, todos os anos, milhares de visitantes a Idanha-a-Nova.
A romaria começa com uma missa solene, seguida de uma procissão tradicional. Após as cerimónias religiosas, as famílias e amigos reúnem-se para o convívio, onde se partilham momentos de alegria e muita animação. A festa é conhecida pelos tradicionais concertos de adufes e cantares tradicionais, com quadras dedicadas à Senhora do Almortão, que evocam a libertação do domínio espanhol. 




Lenda passada de geração em geração:


Num certo dia, neste sítio, um rapazinho que andava a guardar cabras viu, aqui no meio duma murteira, atrás desta fonte, uma santinha que parecia de marfim. Agarrou na santinha e guardou-a no sarrão. Chegou a casa e disse à mãe:
– Trago aqui uma santinha que encontrei, numa murteira ao pé duma fonte.
Diz-lhe a mãe:
– Achaste?
Abriu o sarrão e a santinha não estava lá. E disse para a mãe:
– Ora esta, trazia aqui uma santinha tão bonita e já cá não está!
No dia seguinte, voltou com o gado para o mesmo sítio e viu que estava lá a santinha, no meio da murteira. Agarrou nela, tornou a metê-la lá dentro e atou a boca com uma verguinha dum ramo de giesta ou piorno que encontrou.
E disse o rapaz para si mesmo:
– Ontem fugiste, mas hoje já não foges porque vais atada.
Quando chegou a casa, disse para a mãe:
– Agora já a trago. Atei-a.
Depois, ao abrir, disse:
– Mãe, é impossível! Não está cá!
A mãe disse-lhe que era uma ilusão que trazia com ele.
Respondeu o rapaz:
– Não, não é, mãe. Venha lá comigo. Há aqui um segredo qualquer.
E a mãe respondeu:
– Não é um segredo, é uma ilusão que trazes contigo.
E então, pediu por tudo à mãe para lá ir com ele. A mãe foi ao sítio e viu a santinha no meio da murteira e ficou sem fala.
Depois, disse a mãe:
– Que santinha será esta? Não a vamos levar daqui.
Depressa o povo acorreu e, maravilhado, decidiu levantar a capelinha, mas como o sítio em que apareceu a santinha era baixo, o povo resolveu levantar uma capelinha, no sítio onde se encontra ainda hoje que se via ao longe de todo o lado.

 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Homenagem de Namora a Monsanto







 O escritor português Fernando Namora exerceu a função de médico municipal de Monsanto de 1944 a 1946.  Na sua obra "A Nave de Pedra", reconhece o quanto o marcaram para sempre esses dois anos passados num local à época quase totalmente isolado, cujos habitantes eram naturalmente muito pouco receptivos aos avanços da medicina.

Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já  não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.
Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de deconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. Se, em muitos sítios (a que o viajante esteja afeito, como eu o estava), ao camponês pertence o agro onde mal cabe a sua sombra mas onde planta uma esperançada tenacidade, na Beira-Baixa, na maioria dos casos, nem isso: o campónio tem de seu os braços e aluga-os para subsistir. Ou então, parte: a raia é um ir e vir no mesmo dia, o jogo de morte com a guarda compensa quem à vida dá mais préstimo que valor; e a cidade também é aceno que tenta, por muito que um jugoseja trocado por outro por vezes maior.
Talvez daí venha a terra ser desabrida, a saber-se amanhada pelo trabalho mercenário, como se pode inferir da toada dos cantares, do ritmo da dança, da melopeia da música, associados no mesmo queixume repetitivo, quase un cerimonial de condenados na espera de uma absolvição que não se decifra qual.

Fernando Namora

https://www.youtube.com/watch?v=337FcBClIBM&list=RDEMEyrSVk8xqQjr99iqrWslqA&index=1

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Islândia 3


Origem dos Elfos

Segundo o folclore islandês cristianizado, um dia Deus visitou Eva, mulher de Adão e disse-lhe que no dia seguinte voltaria e queria conhecer todos os seus filhos. Eva ordenou aos filhos que se lavassem e vestissem a sua melhor roupa. Mas quando Deus chegou alguns ainda não estavam prontos. Deus perguntou a Eva:
- Estão aqui todos os teus filhos?
- Sim.
- São só estes? - voltou a perguntar Deus.
- Sim, não tenho mais nenhum. -  mentiu Eva.
- Aquilo que foi escondido de Mim, também será escondido dos homens. - disse Deus.
Para os islandeses essas crianças escondidas são os Elfos.








































 A Escola de Elfos, instituição de ensino em Reiquiavique, capital da Islândia, conta com mais de três décadas de existência. Entre histórias de folclore e encontros sobrenaturais, cerca de 10 mil alunos já por ali passaram desde que abriu em 1987, prontos para ouvir as histórias do reitor, Magnus Skarphedinsson. Com o seu ar bonacheirão, Magnus tem mesmo muito para ensinar, ainda que algumas das matérias fiquem ao critério do aluno: só acredita se quiser.

Antes de mais, é importante lembrar que desde tempos imemoriais  todas as comunidades contam com histórias sobrenaturais. Na Europa medieval houve quem morresse na fogueira por suspeita de ser bruxa ou até lobisomem. Do monstro do Lago Ness ao chupacabra, são muitas as criaturas misteriosas ou sobrenaturais de que ouvimos falar ao longo dos tempos.

Na Islândia, o folclore antigo é rico em histórias de elfos. E quando falamos de elfos não estamos a falar da pequenada que nalgumas histórias ajuda o Pai Natal com presentes, nem do povo que lutou na Terra Média nas histórias de Tolkien, em “O Senhor dos Anéis”. Ainda assim, há diferentes elfos a ter em conta.

“Coleciono histórias sobre experiências paranormais, fantasmas e espíritos e, ainda que nunca os tenha visto, estou convencido de que os elfos e as pessoas invisíveis, os huldufólk, existem”, contava o reitor numa recente entrevista ao britânico “Metro”.

Os huldufólk, entenda-se, são o povo oculto, os tais elfos que habitam as lendas da Islândia (e das vizinhas Ilhas Faroé). Estas crenças populares são tão antigas que certas construções islandesas foram feitas tendo o cuidado de não destruir rochas e grutas onde se acreditava que viviam.

Na verdade, estes elfos inspiram até pequenas construções como a que pode ver na imagem que ilustra este artigo. Este carinho dos islandeses não é acaso. Os elfos não são criaturas maléficas que se escondem nas sombras prontos para nos atacar. Segundo o reitor, “se alguém se perde na floresta, o povo oculto dá abrigo, se alguém está a morrer, eles dão comida, se estão doente, eles ajudam a curar”. Estes são alguns dos feitos que ao longo de séculos foram atribuídos aos elfos.

Há inúmeras histórias assim ao longo dos tempos no país, explica Magnus. Ele sabe do que fala. Segundo o próprio, já ouviu mais de 900 relatos de conterrâneos com histórias de encontros sobrenaturais para contar, além de outros 500 estrangeiros com histórias semelhantes.


As aulas na Escola de Elfos são em inglês (têm vindo alunos dos mais diversos países para assistir) e versam sobre o folclore, história e aquilo que se acreditam ser os hábitos dos elfos Aparentemente, há pelo menos 13 tipos diferentes, com os mais pequenos a começarem nos oito centímetros de altura.

As mesmas aulas versam sobre mais temas sobrenaturais, como histórias de espíritos ou trolls ou outras criaturas sobrenaturais ou eventos paranormais. Magnus, nascido em 1955, é licenciado em História da Islândia na Universidade Islandesa, a mesma instituição onde uns anos mais tarde se formou em Folclore e Antropologia.

Pedro Filipe Pina (texto com supressões)






BRASÃO DA ISLÂNDIA
De pé sobre um bloco de lava, o touro (Griðungur) é o protetor do sudoeste da Islândia, a águia ou grifo (Gammur) protege o noroeste da Islândia, o dragão (Dreki), a parte nordeste e o gigante (Bergrisi) é o protetor do sudeste da Islândia.





Território de dragões

Constava-se que,  num tempo inicial, voavam dragões famintos que devoravam tudo quanto lhes adoçasse as entranhas zangadas. Constava-se que, devastadas as coisas todas, os dragões haviam perdido a capacidade de voar e haviam parado exaustos um pouco por toda a parte. Arfavam e empederniam. Dizia-se que, de tão grandes e espessas peles, haviam radicado como montanhas de boca aberta. Passados infinitos séculos, alguns fumegavam ainda. Algumas bocas, no resto da raiva que continham, cuspiam fogo, já como dragões de pedra. Bichos gordos absolutamente feitos de pedra. Era engraçado olhar para as montanhas da Islândia e imaginar dragões acotovelados. Gigantes e cansados, mas talvez ainda ferroando-se e chamuscando-se uns aos outros por dentro. Culpados e culpando-se de terem tido tanta gula e tanta incúria.


Valter Hugo Mãe,  excerto do romance "Desumanização" inspirado na Islândia

https://www.youtube.com/watch?v=G3BU5kAMnms