domingo, 6 de abril de 2014

Memórias da Ria de Aveiro


Manhã. A chuva em poeira cai sobre os campos verdes da Gafanha. O mundo molhado escorre água e a ria lisa como um espelho reflecte o céu baço. Os longes esfumados perdem-se na bruma. As terras baixas, atravessadas de regos e de vales onde a água repousa e apodrece, embebem-se ainda mais em água peneirada que não cessa de cair. Ria cinzenta, céu cinzento, campos alagadiços e uma luz que atravessa as nuvens pegajosas e envolve os seres e as coisas no mesmo tom casto e uniforme. A Vagueira, os faróis. A ria alarga.
Além à esquerda os palheiros da Costa Nova - mas tudo ainda adormecido na terra, no silêncio e na água. Uma tainha salta...
Depois de uma série de canais e de charcos estagnados e polidos, na planície baixinha feita com lodo extraído da ria, e com areais do outro lado, onde os sarraus e os borrelhos piam, sob um céu empastado e baixo - encontra-se a amplidão indefinida, onde a terra e a ria se confundem. Onde acaba a água e começa a terra? Aquelas velas vêm da barra ou do mistério?... Dois homens arrastam uma chincha num barco estranho. Há-os com o costado por pintar, há-os todos negros, com o grande pescoço esguio do cisne, no momento em que volta a cabeça para trás, e com um toque de vermelho no leme...é gente da Murtosa que habita a bateira. De dia, em geral, dormem, à noite pescam. Levam ali dentro uma panela para a caldeirada, um cesto com batatas, uma esteira para dormir no toldo que armam à proa, e um saco de malha metido na água, para a enguia e a tainha se conservarem vivas.
Esta manhã está cheia deles que a cruzam em todos os sentidos, rapando-lhe infatigavelmente o fundo tapetado de cabelos verdes. Tiram-se da água, o ancinho cheio de fios a escorrer, e metem o moliço na caverna. E o barco segue, levando à proa uma padiola com degraus para o descarregar e ao lado uma prancha que lhe serve de segundo leme. Mal tocam na água...

Maria Angelina-Raul Brandão
https://www.youtube.com/watch?v=mEIQk_6jsZc

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