domingo, 29 de março de 2015
Releio e não reamo nada
Releio e não reamo nada,
a minha vida abrupta é absurda,
a arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora,
e fiquei cego dentro da casa cuja, e pelo mundo, e na
memória, e na maneira
das palavras quentes que eu amava,
com as costuras das gramáticas inventadas tortas mas tão
amadas também elas,
nessa língua das músicas,
e desfaleço então de tudo e nunca mais ressuscito,
e só a dor,
só o pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas,
suas mínimas corolas desirmãs que mexo
entre os dedos aos nós, eruditos e ardentes,
e os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,
e a sopa e o pão meios comidos que nem esses sequer hei
merecido nunca:
e com esses míseros ofícios
morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação
da minha vida
Herberto Helder
https://www.youtube.com/watch?v=Dj3KoTRN1Ko
domingo, 22 de março de 2015
A Primavera
Pouco sabemos sobre a Primavera!
Mas sabemos que as árvores reverdecem,
navios dançam sobre vagas curtas
e às janelas abrem-se os sorrisos
que adoçam os olhares e as manhãs.
Sabemos que o amor vem dos telhados
para ceifar os restos da agonia
e no ar límpido que anuncia o Verão
a coragem ganha alento, novos ritmos.
Sabemos que são fáceis as viagens
e o lançar de escadas sobre o abismo;
que os ventos são amenos e é possível
com um sopro afastar o silêncio e a angústia.
Sabemos que então se lavra a terra
onde germina o pão e os lilases
e é doce repousar sobre os teus seios
- primaveras também, esperança, vida...
Egito Gonçalves
https://www.youtube.com/watch?v=9iVsrFtOF1U
domingo, 15 de março de 2015
Pastéis de Belém
Um goivo. O cheiro de um goivo e logo a praça
imperiosa nas suas trajectórias
que se chamam história.
Na pele do Tejo os barcos de desporto
abrem cortes de luz inquietando a vista
e o tempo é um ouro derramado
em brasa viva sobre os monumentos.
Tenho um certo prazer em andar
por verdes geometrias
e sentir um ar que não me corta a garganta
com perguntas.
Quem sou eu, afinal, neste campo aberto
à pompa e circunstância?
Gaivotas, cansadas de metáforas,
pousam nos ombros da mentira
e todo o amor me cai da toalha da espera
para o mais fundo dos fundos
do meu alheamento.
E nada, nada, além do rio
nada além da pedra antiga trabalhada
cúbica moderna
nada a não ser a rotina de um comboio
de um barco ou de uma imensa
imersa multidão
no labirinto.
E as crianças, nos seus patins em linha,
dão voltas sobre voltas e riscam-me a memória
como a um disco velho no Restelo.
Armando Silva Carvalho
https://www.youtube.com/watch?v=PefLdwMzFBs
segunda-feira, 9 de março de 2015
Uma visita a Portugal
Depois de todas as descrições de Lisboa que eu lera anteriormente, sei que tinha formado uma determinada impressão acerca desta cidade, mas quão diferente ela aparecia à minha frente, na realidade! - que leve, que formosa!, não me cansava de o exclamar. Onde estavam as ruas sujas sobre as quais eu tinha lido, as carcaças atiradas fora, os cães vadios... Não vi nada disso, e quando mencionei tal assunto disseram-me que isso pertencia ao passado, a uns trinta anos atrás; muitos lembravam-se ainda bastante bem desse tempo. Agora, havia estradas largas e limpas, casas hospitaleiras, cujas paredes estavam decoradas com quadrados de porcelana brilhante com desenhos azuis e brancos; as portas e balcões estavam pintados de verde ou vermelho, cores estas que apareciam em todo o lado, até nos barris dos aguadeiros. O passeio público, um jardim comprido e estreito no centro da cidade, tem à noite iluminação a gás; ouve-se música e as árvores floridas espalham uma fragrância por vezes demasiado forte; é como se estivéssemos numa loja de especiarias ou numa confeitaria, na altura em que se preparam e põem gelados de baunilha em exposição.
Nas ruas principais há vida e agitação: passam cabriolés ligeiros; pesadas carroças de camponeses, aparentando serem anteriores à época diluviana, andam lentamente, puxadas por bois; aqui, vêem-se camponeses a venderem leite: o homem anda a pé, com duas ou três vacas que ordenha na rua; normalmente, segue-o um vitelo grande, com um açaime de couro; não recebe mais que a porção de leite que lhe dão. Exibem-se grandes cartazes de teatro nas ruas. A Ópera esteve fechada durante a minha estadia aqui. Os mais frequentados eram o Circo Price, onde se cantavam pequenas peças musicais e operetas, assim como o teatro D. Maria II; este não é muito grande, mas é um edifício muito bonito com filas de colunas e de estátuas, de frente para uma grande praça quadrada onde há árvores plantadas, e com um pavimento de mosaico muito ornamentado. Um pouco mais além fica a Rua do Ouro, onde vivem todos os ourives; um bazar após outro, expõem fios, peças decorativas e coisas gloriosas afins. Seguindo por esta rua, vamos dar à maior praça da cidade: a "Praça do Comércio"; alonga-se mesmo até ao pavimento de mármore da praia aberta sobre o rio Tejo, onde estão os navios.
https://www.youtube.com/watch?v=YPP8-a1Phfw
domingo, 1 de março de 2015
A magia de Lisboa
Mayol soube descobrir muito depressa essa condição de ofídio de Lisboa, descobriu-a com a mesma simplicidade de outros viajantes que, recém-chegados à cidade, descobriram a sua essência ao ouvir os gemidos roucos de um fado num rádio distante. As pessoas que viajam sós têm um sexto sentido, uma espécie de facilidade ou capacidade de percepção muito superior à das que viajam acompanhadas e a todo o instante estão a falar como araras e não se fixam em nada, incapazes de captar pormenores como o que Mayol apanhou no ar, poucas horas depois de chegar a Lisboa, na igreja do Mosteiro dos Jerónimos, onde descobriu gravadas no coro, nas suas duas grandes colunas, as formas sinuosamente mágicas de duas serpentes, decidindo relacioná-las imediatamente com a cidade. Relacionou-as de uma forma primária mas profundamente intuitiva, e o facto é que soube estabelecer a relação, que é o que, no fim de contas, importa realmente.
Mayol relacionou a serpente com Lisboa porque sempre ouvira dizer que as mulheres eram como serpentes e também porque sempre lhe parecera que era verdade isso de as cidades serem mulheres e cada uma ter a sua maneira de agradar. E Mayol tinha gostado de Lisboa desde o momento em que pisou as ruas da Baixa e foi até ao Cais do Sodré; agradou-lhe a cidade, sobretudo porque se sentiu apanhado pela estranha sensação de ter passado toda a vida naquelas ruas, de ter estado sempre ali.
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