domingo, 18 de outubro de 2015

Amadeo


Dos vários modelos de reconciliação, a frequência da cozinha de uma casa será por certo o mais antigo e o mais conseguido. Reconhecerá isto Amadeo quando pinta a "Cozinha da Casa de Manhufe", nesse calor de evocados convívios, solilóquios a que o lume crepitante faz companhia, presentificando gerações que vêm aconchegar o corpo dos viventes, dando ao diário fluir um gosto de coisa perfeita que se nos insere na pele. O ocre terno do reboco, que o castanho húmido das madeiras povoa de uma confidência temperada de seriedade, a negra crosta dos potes de três pés, onde se confeccionam riquíssimas substâncias ora gomosas ora enxutas, ora papudas ora rechinantes de gordura que rapidamente a si mesma se come, tudo faz parte dessa geografia vital. A cancela ficou aberta para as escadas de fora, e bem assim se ergueu a ventana, pois que estamos no São Miguel e na cozinha se abafa. Até quem cabeceia no trasfogueiro, ascende o cheiro do mosto e o hausto do saibro dos caminhos, em cujas margens as amoras se toldam de um sudário pulverulento. A cozinha de Manhufe é lugar de trempes e covilhetes de banha, espetos e alguidares onde o sangue suíno paulatinamente coagula sob a elástica película, as carnes salgadas se desfazem da enxúndia gelatinosa que implora o corte do vinho. O sol, então, acalenta ou doira. Estamos no ano de mil novecentos e treze, a cozinha é do homem e o homem dela, que mais falta para que a obra se cumpra?

Mário Claúdio
https://www.youtube.com/watch?v=5ze0Y8tDEWk

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