domingo, 25 de junho de 2017

As mãos

                     

                        Sabias que as mãos envelhecem mais depressa? Elas
                        estiveram sempre perto do tempo, nunca se cansaram
                        de receber a poeira dos campos, a areia numa praia, o ar
                        que vinha da nossa respiração. Ao folhearem um livro
                        colhiam as palavras. Por vezes aproximam-se
                        para encontrar o peso das coisas e as conhecer
                        melhor. Junto das árvores sentem a resina, talvez
                        a luminosidade que existe no seu interior. Se acenam
                        a alguém ficam depois mais unidas. É assim que o seu calor
                        nos pertence. Depois podes esperar que principie um gesto
                        que seja de todos o mais simples. Será o último? Olha-as
                        de novo, para que elas possam também descansar.

                        Fernando Guimarães
                        (arte de Helena Almeida)
                        https://www.youtube.com/watch?v=JnmbN3Yitcs

domingo, 18 de junho de 2017

As florestas são do outro mundo


Sempre pensei em florestas como se elas fossem
seres sobrenaturais, na extensão das reservas de oxigénio
e gargalhadas minúsculas, de luzes e trovões,
no seu peso de mistérios voadores
e de fadas,
nas cupuladas abóbadas vegetais
onde guinchavam os bichos.

Floresta era para mim uma pedagogia orgânica,
sagrada, herdada de magos
e feiticeiras da escrita,
negra ou imersa no verde absoluto,
germânica ou imensamente amazónica
por anacronia.

No campo onde eu cresci o campo foi sempre um campo
meio aberto ao vento e à falta de memória.
As altas estacas pernaltíssimas, esse pinheiro bravo,
desengonçado e tão pobre de copas e pinhões,
deixavam-no esquecido a medrar gerações
atrás de gerações.

Por que não, por fim, essa floresta?
Irei talvez voltar a chorar vegetalmente,
resignar-me-ei à resina do pinho
coalhada nos meus olhos, e entre sombras de sonhos inverosímeis,
acariciarei algum anão matreiro
oculto na floresta mansa dos pinheiros bravios,
e respirarei o cheiro do eucalipto astuto
para me alisar os nervos encrespados
pela inquietação do mar.

Armando Silva Carvalho
(pintura de Pedro Cabrita Reis)
https://www.youtube.com/watch?v=sgNeH9_8l0w

domingo, 11 de junho de 2017

É preciso um país

               

                 Não mais Alcácer Quibir.
                 É preciso voltar a ter uma raiz
                 um chão para lavrar
                 um chão para florir.
                 É preciso um país.

                 Não mais navios a partir
                 para o país da ausência.
                 É preciso voltar ao ponto de partida
                 é preciso ficar e descobrir
                 a pátria onde foi traída
                 não só a independência
                 mas a vida.

                 Manuel Alegre
                 (pintura de Graça de Morais)
                 https://www.youtube.com/watch?v=ubz94c4SyJU

domingo, 4 de junho de 2017

A dama pé de cabra


D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis estivais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama:era a dama quem cantava.
- Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sóis, que logo me cativastes?
- Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.
- Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
- Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
- De quê, de quê, donzela? - acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes - De nunca dar tréguas à mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça danada!
- Não é isso, dom cavaleiro - interrompeu a donzela a rir. - O de que eu quero que te esqueças é do sinal-da-cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
- Seja assim: está dito. Vá com seiscentos diabos.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa senhora, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

Alexandre Herculano
(pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=BUefckcQwMo