domingo, 4 de junho de 2017

A dama pé de cabra


D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis estivais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama:era a dama quem cantava.
- Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sóis, que logo me cativastes?
- Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.
- Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
- Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
- De quê, de quê, donzela? - acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes - De nunca dar tréguas à mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça danada!
- Não é isso, dom cavaleiro - interrompeu a donzela a rir. - O de que eu quero que te esqueças é do sinal-da-cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
- Seja assim: está dito. Vá com seiscentos diabos.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa senhora, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

Alexandre Herculano
(pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=BUefckcQwMo


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