sábado, 23 de fevereiro de 2019

Verdade? Mentira?




No Teatro Aberto encontram-se duas peças de Florian Zeller, "A mentira" e "A verdade", que colocam em cena dois casais amigos  em crise.  Na peça "A mentira", o marido louva as vantagens da mentira em determinadas situações, enquanto a sua companheira defende, com  intransigência, e acima de tudo, a verdade.   Entretanto, sempre num tom de comédia, as máscaras vão caindo,  e é desvendado o motivo de assumirem posições diferentes: os seus interesses pessoais. 




VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade
(arte de Clay Sinclair)
https://www.youtube.com/watch?v=OnxSVow02cs

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Dor na Arte da Escrita


No âmbito da Pós-graduação em Dor, que decorreu na Universidade Católica, em Lisboa, foi feito um convite a diversas personalidades ligadas às Artes para orientarem uma aula aberta subordinada ao tema "A Dor na Expressão Artística".
Nuno Júdice e António Lobo Antunes falaram sobre a Dor na Arte da Escrita. O primeiro defendeu a opinião de que a dor é essencialmente uma criação literária, pelo que começou a sua intervenção com o poema de Fernando Pessoa "Autopsicografia": "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que realmente sente..." Deu ainda exemplos de poemas de outros autores que falam da dor e que, no seu entender, confirmam a sua interpretação. 
António Lobo Antunes pensa de forma diferente e deu bastante ênfase ao papel da associação dor-morte, na Arte da Escrita, ao longo dos tempos. Com palavras simples, num tom bastante coloquial,  conversou  sobre o tema, aludindo, por vezes, à sua experiência de vida e dizendo, com a maior naturalidade, textos e poemas  de outros autores.


Soneto de Bocage, um dos poetas citados por Lobo Antunes:


Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado,
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.


Pintura: Melancolia de E. Munch
https://www.youtube.com/watch?v=Uq-EHMBHDVo

domingo, 10 de fevereiro de 2019

"Amigos"


Recomendo vivamente a leitura da crónica desta semana
(7 Fev.2019) de Ricardo Araújo Pereira na  revista "Visão".
O humorista confessa que ainda vive como se estivéssemos
em 2003, ou seja antes do "feicebuque". Por exemplo,
quando um amigo faz anos dá-lhe os parabéns com a boca... 
Além disso só tem uns dez amigos, em vez de 5000.
E às vezes discute com eles, mas não em público,
com desconhecidos a ver e a comentar.
Enfim, o que pensaria disto tudo Camilo Castelo
Branco que há mais de 100 anos escreveu este poema?

 Amigos cento e dez, e talvez mais, 
 Eu já contei. Vaidades que eu sentia! 
Supus que sobre a terra não havia 
Mais ditoso mortal entre os mortais. 

Amigos cento e dez, tão serviçais, 
Tão zelosos das leis da cortesia, 
Que eu, já farto de os ver, me escapulia 
Às suas curvaturas vertebrais.

 Um dia adoeci profundamente. 
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente 
Que não desfez os laços quase rotos.

 - Que vamos nós (diziam) lá fazer? 
Se ele está cego, não nos pode ver… 
Que cento e nove impávidos marotos!

domingo, 3 de fevereiro de 2019

As quatro estações

       
"O Outono" foi pintado por Giuseppe Arcimboldo (Milão, 1527 - 1593) que viveu vários anos em Praga. As suas obras mais conhecidas são "As quatro estações", onde usou pela primeira vez imagens da natureza, tais como frutos, verduras e flores, para compor rostos humanos.

           Vem o Inverno com o seu carrinho do frio
           a apertar nas curvas; a Primavera e os seus 
           paroxismos que não duram muito, o Verão
           e os seus langores de ainda menos; e por fim,
           mas também pode ser no meio ou no princípio,
           lá vens tu, que não falhas nunca, melancólico
           e misericordioso Outono, a estenderes-me a taça
           de vinho puro que eu bebo lenta e gravemente
           com aquela lentidão, aquela gravidade característica 
           dos que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa.

           Rui Caeiro 
           (pintura de Arcimboldo)
           https://www.youtube.com/watch?v=Mu2tlD1xy5Q