sábado, 23 de outubro de 2021

Gândara

I

Sem uma ruga de vento.

Sol e marasmo.

Silêncio feito de troncos

e de pasmo.


Campos, pinheiros e campos

quietos. Tanto,

o sol parado

encheu-me os olhos de espanto.


III

Já nem as aves cantam pela maré cheia

da tarde.

À flor da areia

só o silêncio arde.


V

Sol e vento,

lábios de maresia

na lagoa a coalhar,

onda sobre onda,

mar e dia.


Carlos de Oliveira

Foto de Renato Roque

https://www.youtube.com/watch?v=_Nbq16mXRc0

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A conquista de Cacela


As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas 
As cidades do mar pela riqueza 

Porém Cacela 
Foi desejada só pela beleza

Sophia de Mello Breyner Andresen



Ó vila de Olhão



Ó vila de Olhão
Da Restauração
Madrinha do povo
Madrasta é que não

Com papas e bolos
Engana o burlão
Os que de lá são
E os que pra lá vão
E os que pra lá vão
E os que pra lá vão

Ó flor da trapeira
Ó rosa em botão
Tuas cantaneiras
Bem bonitas são

Larga ó pescador
O que tens na mão
Que o peixe que levas
É do teu patrão
É do teu patrão
É do teu patrão

Limpa o teu suor
No camisolão
Que o peixe que levas
É do cais do Olhão

Vem o mandarim
Vem o capitão
Paga o pagador
Não paga o ladrão
Não paga o ladrão
Não paga o ladrão
Ó vila de Olhão
Da Restauração
Madrinha do povo
Madrasta é que não(...)


Zeca Afonso











Ria Formosa


Nasci na Ria Formosa
Sou filha deste sapal
neta da moura de Bias
Sou de Floripes rival
nesta ria fui nascida num dia de claridade
na luz do sol ao meio dia
Em Agosto sou a acalmia 
Sou o vento beduíno
o velho o moço o menino
que há em cada pescador 
Sou o desgosto e a dor
Vela ao senhor dos aflitos
Sou mãe de todos os gritos Padroeira do pavor
que assalta quem é perdido
e de quem teme perder o irmão o pai o marido
Sou a santa no andor em dia de procissão
Sou a rameira de Olhão -Apelido que a inveja
das puritanas me deu-
Pois da braveza do mar
da escalmorrice da vida me veio a pele sertaneja
e o sangue a ferver no corpo que todo o homem deseja
Sou filha da luz da lua
gerada na noite escura numa cópula sem rosto
Sou filha dos homens todos
e de todas as mulheres 
Irmã de todas as vagas
Sou amiga das diabas
Sou amante dos diabos e dos ventos desgarrados
atiçados a sueste
que se lançam contra a duna
Sou vulgar e importuna Rainha dos meus humores
no castelo aonde abrigo os corpos dos pescadores
que a maré por devaneio resolve levar consigo
Olho o esteio de cada barco que entra e sai aquela barra
por onde eu saía à garra para depois na enchente
ser levada na corrente
e aos beijos e abraços entrar de novo à deriva
neste berço
nesta ria
que me viu nascer poeta para em meus versos ou prosa
cantar até rebentar este braçado de mar
a que chamaram Formosa.

Julieta Lima


A Ilha da Culatra 




A Ilha do Farol



De manhã

De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
refletisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a indicar
o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.

Nuno Júdice, natural de Portimão

A Rua


A rua era de terra e casas térreas
ladeavam-na, talvez desde os anos trinta
Para ali tinha sido transplantada
a minha infância, a linha

do comboio passava entre o largo e a ria,
de noite sobretudo parecia-me
ameaçador e imenso o largo, ao fim
da rua com janelas onde assomavam caras

conhecidas, na luz ténue que vinha
das esquinas; quartel e em outubro a feira,
à igreja adjacente um convento, nocturnos pios
de mochos emitido; no coro da igreja

quem leria para o lugar vazio? a alguém ouvia,
sem entender, correr a poesia
essa voz assustava como vinda
de sepulcro onde o eco a transformava;

e contava-me o som sublime quem o
escutara quando a igreja limpava

Gastão Cruz, natural de Faro

Sou daqui

Bichos somos de um certo chão
o único
em que nossos passos encontram seu verdadeiro
sítio e som e ritmo
e nossos sentidos desabrocham
suas mais íntimas pétalas.
Sou daqui. Só aqui pertenço
aos três reinos da Natureza simultaneamente. Sei que
fomos originariamente pó de estrelas
mas só as estrelas algarvias me reconhecem:
piscam-me o olho e pestanejam com fulgor.
Sou filha do casamento da terra com o mar.
Meus olhos não sabem viver sem uma paisagem de água
e meu corpo precisa de assentar neste chão
de aqui vir
ritualmente acertar-se com esse sopro interior a que
chamamos alma.
No exílio reinventei com palavras
todos os sítios em que nasci e cresci
e agora são mais meus
porque assim os dei de novo à luz(...)

Teresa Rita Lopes, natural de Faro

Regresso ao chão da infância

Subitamente regresso ao chão
da infância, à velha casa
na serra deitada. Essa casa
que todos os dias
abre a sua brancura
aos braços do sol, ao céu
para sempre azul. E parece o mesmo
esse velho céu que tanto
interroguei. Todos os dias
regresso ao chão da primeira
fala. A sombra da azinheira
que tantas vezes abracei
acolhe-me de novo nos seus braços
cansados. Terá reconhecido o menino
que sorri ainda
ao seu chão mais antigo?

Casimiro de Brito, natural de Loulé

Meu Algarve



Meu Algarve encantador,

P´ra o poeta e p´ra o pintor
Tens motivos de sobejo…
Até eu, se tivesse arte,
Queria ao mundo mostrar-te
Como te sinto e te vejo.

Meu Algarve encantador,
A par da tua alegria,
Tens o encanto, a magia,
Das amendoeiras em flor.

Meu qu´rido Algarve em Janeiro,
Ao turista endinheirado,
escondes o corpo ulcerado
no fatinho domingueiro.

Só vêem flores os olhos
Desses ilustres senhores
Mas no Algarve, os abrolhos
São muito mais do que as flores.

Mas quem, como eu, o conhece,
Sabe que ele infelizmente
Por dentro é muito diferente
Do que por fora parece.

António Aleixo