quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
De volta a casa
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022
Natal...Natais...
Voltas pequeno ao mundo.
Não deixas nunca de nascer!
Com braços, pernas, mãos, olhos, semblante,
Voz de menino.
Humano o corpo e o coração divino.
Natal… Natais…
Tantos vieram e se foram!
Quantos ainda verei mais?
Em cada estrela sempre pomos a esperança
De que ela seja a mensageira,
E a sua chama azul encha de luz a terra inteira.
Em cada vela acesa, em cada casa, pressentimos
Como um anúncio de alvorada;
E em cada árvore da estrada
Um ramo de oliveira;
E em cada gruta o abrigo da criança omnipotente;
E no fragor do vento falas de anjos, e no vácuo
De silêncio da noite
Estriada de súbitos clarões,
A presença de Alguém cuja forma é precária
E a sua essência, eterna.
Natal… Natais…
Tantos vieram e se foram!
Quantos ainda verei mais?
Cabral do Nascimento, em ‘Cancioneiro’
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
Passado
em que escrevia as minhas composições de Francês
je suis allée à la plage (com dois ee,
o verbo ètre pede concordância), j’ai beaucoup
nagé e depois terminava com o sol a pôr-se
no mar e ia ver gaivotas ao dicionário
As correcções a vermelho e o Passé Simple,
escrever cem vezes nous fûmes vous fûtes ils fúrent
as tardes de sol
e Madame Denise que dizia Toi ma petite
com ar de sargento e a cara zangada a fazer-se
vermelha (tenho glóbulos a mais, faites attention)
e o olhar que desmentia tudo
em ternura remplit
E as regras decoradas e as terminações
verbais a i s, a i s, a i t,
a hora de estudo extra e o sol de fim de tarde
a filtrar-se pelas carteiras,
a freira a vigiar distraída em salmos
eu a sonhar de livro aberto
once upon a time there was a little boy
e as equações de terceiro grau a uma
incógnita
Ah tardes claras em que era bom
ser boa, não era o santinho nem o rebuçado
era a palavra doce a afagar-me por dentro,
as batas todas brancas salpicadas de gouache
colorido e o cinto azul que eu trazia sempre largo
assim a cair de lado à espadachim
As escadas de madeira rangentes
ao compasso dos passos, sentidas ainda
à distância de vinte anos,
todas nós em submissa fila a responder à chamada,
“Presente” parecia-me então lógico e certo
como assistir à oração na capela e ler as Epístolas
(De São Paulo aos Coríntios:
Naquele tempo...),
tem uma voz bonita e lê tão bem, e depois
mandavam-me apertar o cinto para ficar
mais composta em cima do banquinho,
à direita do padre
E o fascínio das confissões,
as vozes sussurradas na fina teia de madeira
castanha a esconder uma falta,
o cheiro do chão encerado e da cera das velas
e quando deixei de acreditar em pecados
e comecei a achar que as palavras não prestam
e que era inútil
inútil a teia de madeira
Ah noites de insónia à distância de vinte anos,
once upon a time there was a little boy
and he went up on a journey
there was a little girl, une petite fille
e o passé simple, como parecia simples o passado
Au clair de la lune
mon ami Pierrot
Prête-moi ta plume
pour écrire un mot
Escrever uma palavra
uma só
ao luar
a pedir concordância como uma carícia
Elles sont parties,
les mouettes
Ana Luísa Amaral
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
Envelhecer
10 Junho, 1967
29 Agosto, 1967
O Amor que eu tinha à literatura transferi-o para outros amores que lhe eram prévios, uma vez que era impossível, sem contradição com estes, uma adesão total a ela, por esse tempo. Cumpri-me integralmente por esse caminho. E por isso posso hoje voltar a ela, envelhecido, sim, mas não exausto. Amor velho não cansa!
Mário Sacramento (07/07/1020 - 27/03/1969)
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/biografia-vida-e-obra-de-mario-sacramento/
José Estêvão tribuno de Aveiro
Ave, Aveiro
Escrevo-te e não sei quem és — como face para sempre
talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por
praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores
abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges)
às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da
avó.
Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo dicionário ao sapateiro da Fonte Nova, faço as primeiras malcriadices no Parque, invejo a farda soldadesca do Luisinho, tenho uma icterícia de ovos moles...
Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do
Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes — descubro a beleza com que
te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das
marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de
estudantes... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim
Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da
Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, lanço uma cervantina burricada pelo
teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua)
o canto em coro da lnternacional — conspiro adolescentemente...
Que te aconteceu, entretanto? Não dou fé disso. Estavas aí,
talvez. Para onde quer que me volte, descubro, porém, que um braço me
acompanha sempre, apontando — como sombra impressa no chão! — o caminho dos
meus passos: o do discurso coalhado em bronze do teu tribuno... Lobrigo-o na
Barra, mandando calar a ronca; na Costa Nova, mostrando as xávegas
desprotegidas; no paredão, invectivando o porto inconcluso; no Senhor das
Barrocas, deplorando o que resta do templo; nas cancelas, dizendo porquê? ao
tráfego... Nem sempre entendo o que quer, mas que quer, quer!
E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha
apenas, perdida nas brumas do passado... Como eu, cresces desajeitada e
errabunda. Largas os calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres
risca na cabeça, asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue,
pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, tiras o nome do teu génio tutelar
do frontispício do Liceu... Deliras, ó púbere! Pouco tempo tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. Passamos um
pelo outro, eu trocando a farda pela bata, tu trocando os pergaminhos por
licets camarários... Descontas letras onde vendias cafés, proíbes que as casas
tenham uma testa mais alta que a do vizinho, fazes concorrência ao Portugal dos Pequeninos como quem
ganha saudades dos tempos em que podia brincar... Eu palpo barrigas, tu palpas
carteiras. E acontece a tragédia: descubro que envelheço mais depressa do que
tu — e sem que tenha podido conhecer-te! Não chegarei a ver-te dona dos teus
passos, querida Amiga, e tenho pena, pois virás a ser formosa quando ganhares o
juízo que a juventude não tem! Não te passeiam ainda — senão como amostra — as
cabeleiras e as barbas psicadélicas. Mas andas tão miniurbe que coro de ver-te!
Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos. E,
todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu
encaixilhado nas marinhas — e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se
nos tabuleiros... Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton
coeur balance indecisamente — e o meu com o teu... Mas o meu com cãs e o teu
indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e és viúva dum só
Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno... O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos
séculos!
Amén
Mário Sacramento (1920-1969)
Publicado em "Comércio do Porto" , 22 de Fevereiro de 1969 (texto com supressões)