Ave, Aveiro
Escrevo-te e não sei quem és — como face para sempre
talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por
praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores
abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges)
às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da
avó.
Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo dicionário ao sapateiro da Fonte Nova, faço as primeiras malcriadices no Parque, invejo a farda soldadesca do Luisinho, tenho uma icterícia de ovos moles...
Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do
Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes — descubro a beleza com que
te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das
marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de
estudantes... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim
Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da
Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, lanço uma cervantina burricada pelo
teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua)
o canto em coro da lnternacional — conspiro adolescentemente...
Que te aconteceu, entretanto? Não dou fé disso. Estavas aí,
talvez. Para onde quer que me volte, descubro, porém, que um braço me
acompanha sempre, apontando — como sombra impressa no chão! — o caminho dos
meus passos: o do discurso coalhado em bronze do teu tribuno... Lobrigo-o na
Barra, mandando calar a ronca; na Costa Nova, mostrando as xávegas
desprotegidas; no paredão, invectivando o porto inconcluso; no Senhor das
Barrocas, deplorando o que resta do templo; nas cancelas, dizendo porquê? ao
tráfego... Nem sempre entendo o que quer, mas que quer, quer!
E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha
apenas, perdida nas brumas do passado... Como eu, cresces desajeitada e
errabunda. Largas os calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres
risca na cabeça, asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue,
pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, tiras o nome do teu génio tutelar
do frontispício do Liceu... Deliras, ó púbere! Pouco tempo tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. Passamos um
pelo outro, eu trocando a farda pela bata, tu trocando os pergaminhos por
licets camarários... Descontas letras onde vendias cafés, proíbes que as casas
tenham uma testa mais alta que a do vizinho, fazes concorrência ao Portugal dos Pequeninos como quem
ganha saudades dos tempos em que podia brincar... Eu palpo barrigas, tu palpas
carteiras. E acontece a tragédia: descubro que envelheço mais depressa do que
tu — e sem que tenha podido conhecer-te! Não chegarei a ver-te dona dos teus
passos, querida Amiga, e tenho pena, pois virás a ser formosa quando ganhares o
juízo que a juventude não tem! Não te passeiam ainda — senão como amostra — as
cabeleiras e as barbas psicadélicas. Mas andas tão miniurbe que coro de ver-te!
Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos. E,
todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu
encaixilhado nas marinhas — e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se
nos tabuleiros... Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton
coeur balance indecisamente — e o meu com o teu... Mas o meu com cãs e o teu
indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e és viúva dum só
Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno... O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos
séculos!
Amén
Mário Sacramento (1920-1969)
Publicado em "Comércio do Porto" , 22 de Fevereiro de 1969 (texto com supressões)
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