sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Envelhecer


10 Junho, 1967

Faz hoje trinta anos que fui preso, a primeira vez, pela polícia do fascismo - ao tempo, a P.V.D.E. É dia comemorativo! Assinalo-o abrindo nele este diário, que será de reflexões ou apontamentos e não de factos, pois foi o perigo destes que me fez evitar o gosto do jornal íntimo. Se nunca houve carta ou rabisco que os cães de fila não esquadrinhassem à lupa! Entre prisões (5) e buscas (3), quantas recordações não perdi, voluntária ou involuntariamente! Até o diarismo, companheiro e confidente da frustração, foi boicotado...
Envelhecer é desvalorizar o futuro, dum ponto de vista pessoal. E reganhar, de certo modo, o passado. Se estas linhas, escritas entre duas consultas, podem ajudar-me a preencher o vazio do imediato, por que evitá-las, hoje? Bem se me dá que as levem ou que as destruam! Não deixarei nelas o quer que seja que prejudique terceiros.


22 Agosto, 1967

A minha família passou maus bocados com as dificuldades financeiras motivadas pelas minhas sucessivas prisões, todas de seis meses, e pouco espaçadas umas das outras. Grande homenagem devo por isso à minha Mulher. Os meus filhos reflectem também essa marca: a sua reserva perante o empenhamento ideológico é quase um reflexo condicionado contra o que os fez sofrer.É duro, ninguém sabe quanto, mas é assim, que lhe hei-de eu fazer? Sempre na mira de os ajudar, fiz sair artigos, sob a forma de cartas, que a página literária do Jornal de Notícias publicou sob pseudónimo. 

29 Agosto, 1967

Os meus Filhos  não têm preconceitos religiosos, realmente. Mas não têm também um ideal que os norteie. como pude eu falhar nisso? Ou como pôde o ambiente sobrepor-se-me nisso? Não vale a pena arrepanhar-me a procurar-lhe uma causa que talvez esteja, afinal neles - e seja a sua verdade. Vejo-os, pelo menos, moralmente íntegros, em sentido não convencional. E isso é uma alavanca com que poderão abrir o seu caminho.

19 Agosto, 1968

Domingo na Ria, na lancha do turismo, com os Abrantinos, os "Alvaneses e outros. Piquenique à la bourgeoise, em fundo azul-oiro. A paisagem é mulher, e eu só me entendo com ela - a sós. Partilhada, é o social que passo a ver reflectido nela: o moliço abandonado, à tona de água, no caso de ontem. Tanta incúria dói-me, como se a "propriedade" fosse minha.
Úberes pejados de sal, barcos de pêlo arruçado, bandos nostálgicos de gaivotas (dão-me saudades donde não fui!), a serrania violeta... E o coalho dos lodos, a estragar o encanto destas águas turvas, senão a dizer-nos que são autênticas - e não um lago camarário regrado e mesquinho...

22 Janeiro, 1969

 O Amor que eu tinha à literatura transferi-o para outros amores que lhe eram prévios, uma vez que era impossível, sem contradição com estes, uma adesão total a ela, por esse tempo. Cumpri-me integralmente por esse caminho. E por isso posso hoje voltar a ela, envelhecido, sim, mas não exausto. Amor velho não cansa!


Mário Sacramento (07/07/1020 - 27/03/1969)

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/biografia-vida-e-obra-de-mario-sacramento/

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