Em Coimbra, na casa de Miguel Torga, que visitávamos sempre que acedíamos à cidade, Natália Correia perturba-se. O escritor abeira-se do fim. Deitado num divã, junto à janela do escritório onde nos recebe, sidera-nos com o seu desespero branco: "Ainda bem que vou morrer, não assistirei à agonia de Portugal. Portugal vai desaparecer nesta CEE, a sua cultura, a sua economia, não aguentarão os embates que lhe vão ser impostos. Onde estão os políticos, os intelectuais, que não vêem isso? É catastrófica a sua falta de lucidez!"
Ele não acreditava que " o País sobrevivesse integrado na comunidade Europeia", repetia, repetia - qual Camões após Alcácer Quibir. "Portugal está a ser destruído por dentro, pelo centrão que o sequestrou através do voto para o roubar, enganar, aviltar", arquejava, olhando para lá dos vidros da saleta onde o corpo se lhe desfazia.
Preocupado com a tosse de Natália (a doença tomara-a já), levantou-se, foi buscar um estetoscópio e obrigou-a a deixar-se consultar. "Não está nada bem", sussurraria. Sentou-se à secretária e prescreveu-lhe uma receita. A última que passou. "Em vez de a aviar numa farmácia vou guardá-la como recordação, um tesouro", decidiu ela comovida...
"Oh, Pátria minha tão bela e perdida", irrompe no auto-rádio, de regresso a Lisboa, o coro do Nabuco de Verdi. Então ela eleva a voz, abre a janela e canta, e leva-nos a cantar, lágrimas e entoações soltas ao infinito: "Oh, mia Patria si bella e perduta, Patria mia perduta"..."
O carro oscila e, alado, ergue-se da estrada, deixando as luzes do casario de Coimbra para baixo, para baixo, e, por eternidades, voga à altura do Va Pensiero, à altura da paixão de Torga e Natália pelo país que os almou para sempre.
Fernando Dacosta
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