quinta-feira, 19 de junho de 2025

Homenagem de Namora a Monsanto







 O escritor português Fernando Namora exerceu a função de médico municipal de Monsanto de 1944 a 1946.  Na sua obra "A Nave de Pedra", reconhece o quanto o marcaram para sempre esses dois anos passados num local à época quase totalmente isolado, cujos habitantes eram naturalmente muito pouco receptivos aos avanços da medicina.

Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já  não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.
Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de deconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. Se, em muitos sítios (a que o viajante esteja afeito, como eu o estava), ao camponês pertence o agro onde mal cabe a sua sombra mas onde planta uma esperançada tenacidade, na Beira-Baixa, na maioria dos casos, nem isso: o campónio tem de seu os braços e aluga-os para subsistir. Ou então, parte: a raia é um ir e vir no mesmo dia, o jogo de morte com a guarda compensa quem à vida dá mais préstimo que valor; e a cidade também é aceno que tenta, por muito que um jugoseja trocado por outro por vezes maior.
Talvez daí venha a terra ser desabrida, a saber-se amanhada pelo trabalho mercenário, como se pode inferir da toada dos cantares, do ritmo da dança, da melopeia da música, associados no mesmo queixume repetitivo, quase un cerimonial de condenados na espera de uma absolvição que não se decifra qual.

Fernando Namora


Nenhum comentário:

Postar um comentário