segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Ria de Aveiro


É um momento solene. Aí para baixo é a ria de Aveiro(...) O viajante fez bem as suas orações: não há vento, a luz é perfeita, as infinitas águas da ria são um imóvel lago. Este é o reino do Vouga, mas não há-de o viajante esquecer as ajudas da arraia-miúda de rios, ribeiras e ribeirinhos que das vertentes das serras da Freita, de Arestal e do Caramulo avançam para o mar, alguns condescendendo afluir ao Vouga, outros abrindo o seu próprio caminho e encontrando sítio para desaguar na ria por conta própria. Digam-se os nomes de alguns, de norte para o sul, acompanhando o leque desta mão de água: Antuã, Ínsua, Caima, Mau, Alfusqueiro, Águeda, Cértima, Levira, Boco, fora os que só têm nome para quem vive à borda deles e os conhece de nascença. Se este dia fosse de estivais lazeres, estariam as estradas em aflição de trânsito, as praias em ânsia de banhos, e nas águas não faltariam as embarcações de folguedo mecânico ou à vela. Mas este dia, mesmo de tão formoso sol e tão aberto céu, é de alto Inverno, nem sequer está a Primavera em seus primeiros ares. O viajante, pelo menos assim quer acreditar, é o único habitante da ria, além dos seus naturais, homens e bichos da água e da terra. Por isso (todo o bem há-de ter a sua sombra) estão as salinas desertas, os moliceiros encalhados, os mercantéis ausentes. Resta a grande laguna e a sua silenciosa reapiração de azul. (...) O viajante sabe que está a querer exprimir o inexprimível, que nenhumas palavras serão capazes de dizer o que uma gota de água é, quanto menos este corpo vivo que liga a terra e o mar como um enorme coração.

José Saramago
http://www.youtube.com/watch?v=5OL_ptX0098

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