sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Viagens na minha terra


Às vezes passo horas inteiras
Olhos fixos nestas braseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai.

Que pitoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Prontos os dois para partir:
- Adeus! - adeus é curta a ausência,
Adeus! - rodava a diligência
Com campainhas a tinir!

E, dia e noite, aurora a aurora,
Por essa doida terra fora,
Cheia de Cor, de Luz, de Som,
Habituado à minha alcova
Em tudo eu via coisa nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caía em lágrimas - e, enfim,
Tão pontual às onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Casa
Toda de lume, cor de brasa,
Altiva, entre árvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem sorrindo a minha Avó.

E então, Jesus! quantos abraços!
Qu' é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como ele vem!
E admirada, com as mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Belém!

António Nobre
http://www.youtube.com/watch?v=4BHdvDYyCVA

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Guardador de Rebanhos


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas(...)

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as(...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk

domingo, 11 de dezembro de 2011

O meu afilhado grande


Sou padrinho do meu sobrinho mais velho, o Hugo, que vai fazer 22 anos e é a prova andante e falante de que estou velho.
O meu afilhado grande está na faculdade, namora e conduz, vota, decide cada coisa na sua vida. Claro que, por maior que seja e mais barba o aflija, nós temos dele uma eterna versão pequena no coração, uma versão quase bebé que nos impele para pensarmos que é ainda o nosso menino desprotegido por quem temos de pensar, por quem temos de decidir.
Até certo ponto, ia ser tão bom que pudéssemos ainda mandar nele, para o obrigarmos a vir aos nossos jantares quando quiséssemos, para o obrigarmos a estar sempre presente para cura das nossas mais absolutas saudades, para o vermos sempre crescer, como crescer mais, porque continuamente nos maravilham as crianças da nossa família. E isto sou eu, tio casmurro, a acriançar por defeito o meu afilhado grande, mais alto do que eu, que já está na faculdade, namora e vota e decide cada coisa na sua vida a autonomizar-se mais e mais da nossa. Oh, destino cruel, porque se autonomizam de nós os nossos meninos.
Tenho muito orgulho no meu afilhado grande. Tenho orgulho que seja também ele um coração amanteigado que guardará algures a impressão dos abraços, aquele sorriso muito entregue, a malandrice das palavras feias dos quatro ou cinco anos. Algures fica esse reduto simples de sensibilidade, que nos enternecia tanto quanto nos fazia rir.

Walter Hugo Mãe
http://www.youtube.com/watch?v=XsgZZ2-D6g8&feature=related

domingo, 4 de dezembro de 2011

Estória para a Rita


Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
- Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele em desespero:
- Agora, é que nunca!
A menina, nesse repente, se ergueu  e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
- Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor...
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. e o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo a lua se recompunha.
- Viu, pai? Eu acabei a sua história!
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=t6oWo0uGDDI

sábado, 26 de novembro de 2011

O Futuro Perfeito


A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.

Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Íntima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.

E tira, tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.

Vitorino Nemésio
http://www.youtube.com/watch?v=1HRa4X07jdE

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Poema dedicado à filha


No teu rosto rápido a inteligência já está vendo
a luz das estrelas e a caligrafia do vento.
Vives tão intensa que todo o movimento
ondeia na surpresa que ilumina
a dureza sem fim do pensamento.
Emerges da solidão espessa
até à primitiva ondeação do espaço.
O sítio onde fores será aberto aos animais
com os quais moves a organização mais íntima
do ser. A tua vocação é a de estares a vir
ao caminho de seres toda no teu acto
em que inicias e condensas um corpo feliz de inteligência.

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=d_psFfD9Ib4

sábado, 12 de novembro de 2011

To Helena


Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente(...)
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente

Ruy Belo
http://www.youtube.com/watch?v=SbZgTLis8fQ

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Outono


Nas folhas que tombam para sempre
há uma euforia que exulta de castanho.

Vêem-se no céu árvores ao contrário
com as raízes cravadas nas estrelas, e os barcos
oscilam num mar mais fundo que o costume.

Que peso é este, que no outono
enterra as coisas terra adentro,
e existe nas feridas abertas pelo ar?

Que cores conseguem perturbar a casa,
murmurando escuro nas janelas?Quem
nos expulsa da terra prometida?

Que morte se entranha na madeira
das árvores do jardim? Que vento
ilude a rua moribunda?

A luz é indecisa como um fruto
que em breve irá morrer, e ilumina
perguntas sem resposta.

A terra acorda para adormecer mais fundo,
e o dia dança com a morte
no halo ruivo do mundo.

Isabel Cristina Pires
http://www.youtube.com/watch?v=6zkmjyyzB28

Outono

domingo, 23 de outubro de 2011

O inominável


Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=mLq8h66oGt0

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Paisagem nas dunas


A criança, sentada na cadeira de balouço examina a paisagem. Olhos piscos, mas minuciosos, na violência da luz exterior.
A primeira zona de areia (mancha a ferver num hálito prateado, como o sal dos velhos itinerários: ruivo por dentro, alvo por fora) ocupa o terço inferior da aridez que a janela enquadra.
Segue-se uma faixa estreita de gramíneas: a evaporação da lagoa (juncos densamente roxos) submerge-as num tom mais carregado que o da própria água. Esta área, no entanto, é bastante instável: sob a declinação do sol, as cores mudam com frequência de intensidade; basta um sopro de vento, a ondulação pouco perceptível que provoca, para clarear ou escurecer as gramíneas.
Na outra margem, a linha das dunas reflecte o movimento dessa ondulação (sinusóide ténue demarcando a altura da segunda grande zona de areia) e serve de limite ao terço intermédio da paisagem.
O último terço acaba na linha superior do caixilho: formam-no as dunas distantes (recorte acentuado, revérberos de cal, como a auréola, a inquietação que as estrelas irradiam fixamente). Ao fundo, uma nesga de azul pode parecer ao mesmo tempo céu e mar; placa de zinco a incendiar-se; ou apenas um reflexo turvo da luz.
Levanta-se e examina também a ampliação fotográfica, suspensa na parede (perto da janela), que reproduz esta mesma paisagem: a moldura dá-lhe um enquadramento semelhante; falta-lhe porém a cor real, e o tempo destingiu a imagem: os contrastes são pouco visíveis, desaparecem as três zonas distintas, dissolvem-se numa única mancha castanha (quase sépia) à medida que os anos (e a réstia de sol batendo na parede pelo fim da tarde) devoram linha a linha a nitidez dos contornos. Reconhece-se ainda a paisagem, mas há sobre as coisas o resíduo dum luar lento que se esconde para lá das últimas dunas.

Carlos de Oliveira
http://www.youtube.com/watch?v=jzjofi4yH9A

sábado, 8 de outubro de 2011

Berlengas no prato


Meteu-se o viajante à estrada e deixando por agora o cabo Carvoeiro, desceu a Peniche. Chegado, foi-se informar das chegadas e partidas para as Berlengas. O viajante tem dado algumas provas de ser tolo, não estranhe que desse mais esta. Julgava ele que ir às retiradas ilhas era como apanhar o autocarro ou o comboio. Pois, não senhor. Barcos regulares, há-os a partir de Junho, e fretar hoje uma traineira que o levasse, só com forte razão e grande despesa, vistas as posses. O viajante é no cais uma estátua de desolação, parece que ninguém tão cedo será capaz de o arrancar à magoada postura, mas tendo a fisiologia as desconcertantes reacções que se lhe reconhecem, encontrou o desgosto equilíbrio numa súbita e declarada fome. O viajante, por atavismos remotos, é fatalista quando não tem outro recurso: o que não tem remédio, remediado esteja. Ir às Berlengas não pode ser, pois então almoce-se.
A vida tira com a mão direita, dá com a esquerda, ou tanto faz. O viajante teve as Berlengas no seu prato, as ilhas e todo o mar em redor, as águas profundas e azuis, as sonoras grutas, a fortaleza de São João Baptista, o passeio a remos. Cabe tudo isto numa posta de cherne?  Cabe, e ainda sobra peixe. Pela janela vê o mar, a luz brilhante que salta sobre as ondas, sente ainda uma fugidia pena de não as ir sulcando a esta hora, e num estado muito próximo da beatitude regressa ao manjar roubado às mesas de Neptuno, a esta hora irritado e perguntando às sereias e aos tritões quem foi que lhe comeu o cherne do almoço. Oxalá, de zanga, o deus dos mares não mande por aí uma tempestade.

José Saramago
http://www.youtube.com/watch?v=xvHYGv-Ul18&feature=related

domingo, 2 de outubro de 2011

A Cidade e as Serras


Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros - por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe Espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um Ser único e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo,  governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frémito de vida, por menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que não se repercuta em todas,  até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol, que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo!


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lobos e Homens


Eu é que conheço a Samardã, desde os meus onze anos. Está situada na província Transmontana, entre as serras do Mésio e do Alvão.
Na vertente da montanha que dominava a Samardã, havia um fojo - uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o cerrado. A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço, e atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém, transpor de salto o muro era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa. A fera provavelmente compreendia então que fora lograda; mas em vez de largar a presa, e aliviar-se da carga, para tentar mais escoteira o salto, a estúpida sentava-se sobre a ovelha e, depois de a esfolar, comia-a. Presenciei duas vezes esta carnagem em que eu - animal racional - levava vantagem ao lobo tão somente em comer a ovelha assada no forno com arroz.

Camilo Castelo Branco
http://www.youtube.com/watch?v=ECRK5oqO4rk

domingo, 18 de setembro de 2011

Sintra



Aqueles passeios a Sintra tinham sido sempre o meu regalo. Por lá andava todo o santo dia, de chapéu na mão, assobio na boca, a boa sombra, Seteais, as fontes, almoço no Lawrence (ou no Pombinha, conforme o orçamento), depois os Capuchos, as ruínas, a Pena... Cheguei mesmo a dormir uma noite, sozinho, nas ameias do Castelo dos Mouros. Foi no Verão, não há memória dum Agosto assim tão quente. A coisa mais extraordinária, nunca o hei-de esquecer, foi que o Sol se pôs no mesmo instante em que a Lua rompeu, e vinha cheia! Um espectáculo como nunca vi outro, nem sol da meia-noite, nem auroras boreais. Eram dois sóis, qual deles o maior, qual o mais vermelho, suspensos no horizonte, em lados opostos do mundo. Parecia uma alucinação ou um caso de espelhismo natural. Durante instantes tive a ilusão dum "fenómeno" ou cataclismo: o universo parava, e ficava retido entre aqueles dois bugalhos enormes de luz vermelha e baça...Depois o Sol afundou-se, e a Lua subiu, empalideceu, esfriou, fez-se uma lua de balada à Soares de Passos. Enfim, lá fiquei essa noite, e por sinal que me fartei de bater os queixos com frio, sem sobretudo, no Agosto mais quente de que rezam lendas encantadas.
E aqui vou eu agora a caminho de Sintra, sem mais nem menos(...)
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a altitude. Postado agora na arcaria ogival do Palácio Real, olhei o alto da Pena, e quis ter asas para galgar os penhascos, roçar os cimos do arvoredo, ir poisar naquelas torres e ameias dignas do Walt Disney. Mas, com franqueza, nem asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da vila, a Pena pareceu-me um caso de respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de ciclopes exasperados, de garras crispadas, a agatanhar o céu. Como é que eu pude outrora trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a fazer? E o que é que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado pensamento, que secreto desejo, anseio de galgar o hiato do tempo, desgarradora saudade ou largueza de vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando.

José Rodrigues Miguéis
http://www.youtube.com/watch?v=ZgH2AEGbUMA

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Gente barrosã


   Nem eu sei quando nasceu no meu espírito este amor pelos povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura, por todos os que vivem isolados no planeta.
   As pequenas ilhas, sobretudo, fascinam-me, porque permitem observar melhor o homem entregue a si próprio, fechado sobre si mesmo e, simultaneamente, disperso no infinito, entre mar e céu - inconsciente até do labor psíquico por ele realizado perante o eterno limite.
   É, especialmente, nas gentes que vivem entre cadeias de montanhas que vamos encontrar, de novo, o homem metido em si próprio, o homem que reduziu a vida à árdua conquista do pão quotidiano e o enigma do infinito a uma simples crença, que colocou ao canto da alma como um bordão, para dele se servir nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bate à porta. Tradicionalista, página viva de antropologia, a sua atitude ante o mundo de hoje dir-se-á igual à dos seus maiores perante o mundo de ontem e de todos os dias que já se perderam no cinerário do tempo. Mas não é assim. Agora e logo, neste raciocínio, naquela fala, no desenrolar das ambições e dos intentos, descobre-se a força da evolução que o vai penetrando, hoje um pouco, amanhã mais, num trabalho lento de pua furando granito.
   Às vezes, parece-nos surpreender, nessa demorada metamorfose, algo da personalidade remota de todos nós, como se antiquíssima reminiscência faiscasse, de súbito, em sombrio recanto do nosso espírito. E surge, então, como que um sentimento de pretérita fraternidade, que se projecta no presente, abrindo-se em compreensão e amor.

Ferreira de Castro
http://www.youtube.com/watch?v=q0WBMXTUn4Q

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O lugar da casa


Uma casa que fosse um areal
de deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=6fZRssq7UlM

sábado, 27 de agosto de 2011

Sobre a leitura


Tanto os leitores que procuram um passatempo e uma distracção como aqueles que desejam aumentar a sua cultura atribuem aos livros não sabemos bem quais energias ocultas capazes de recrear e de elevar espiritualmente (...) Por isso comportam-se como aqueles doentes pouco instruídos que, sabendo que nas farmácias se encontram muitos medicamentos eficazes, se aplicam muito e provam, aqui e ali, tudo o que encontram, em cada prateleira e em cada boião. No entanto, tal como nas verdadeiras farmácias, também nas livrarias e bibliotecas cada um de nós poderia encontrar as ervas medicinais que são úteis no seu caso,  das quais poderia obter restauro e novo vigor, em vez de se intoxicar e encharcar com as mesmas.
Por isso, eu ouso afirmar que, por toda a parte, se lê demasiado e que toda esta leitura não honra de modo algum, antes ofende a literatura. Os livros não existem para condicionar mais do que nunca os homens já condicionados e menos ainda para fornecer a homens incapazes de viver um pequeno meio inconsequente que lhes assegure uma parecença e um sucedâneo da vida. Pelo contrário, os livros apenas têm valor se conduzem na direcção da vida, se a sabem servir e ser-lhe úteis, e qualquer hora de leitura da qual não nasça para o leitor uma sensação de rejuvenescimento, um hálito de frescura nova, é uma hora desperdiçada.
Sob um aspecto puramente exterior, ler constitui uma ocasião, uma obrigação de nos concentrarmos e nada é mais errado do que lermos para "nos distrairmos". Quem não sofre de psicopatias não deve, absolutamente, distrair-se, antes deve concentrar a sua atenção, deve, sempre e em toda a parte, onde quer que se encontre e independentemente daquilo que fizer ou sentir, estar presente com todas as forças do seu ser. Também na leitura, portanto, é necessário que nos sintamos convencidos de que cada livro digno desse nome representa uma concentração, um compêndio e uma forte simplificação de coisas complicadas. Até o mais pequeno poema é já um semelhante resultado do adensamento e da simplificação de várias sensações humanas; e se, lendo, eu próprio não sinto vontade de participar e de colaborar com atenção no processo criativo e cognitivo, quer dizer que sou um mau leitor.

Hermann Hesse
http://www.youtube.com/watch?v=JpgRKXzB6tI&feature=related

domingo, 21 de agosto de 2011

A Minha Tarde


Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore
arranjo pássaros arranjo crianças
tenho mesmo à minha disposição o mar
talvez com tudo isto possa formar uma tarde
uma tarde azul e calma onde me possa refugiar
Mas e as ideias as doutrinas os problemas?
Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo
como pretender ter resolvido o mínimo problema?
E as ideias, que só servem para dividir?
As ideias têm húmeros inúmeros
e é difícil caminhar no meio da multidão
Podia dizer (mas não me deixa descansado):
Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado
Deixai os pássaros cantar as crianças brincar
o tempo não urge o coração não arde
Quem sou eu? Eu só e minha tarde
As crianças com as suas vozes brancas
riscam alegremente o céu azul
passam as aves em seu voo rasante
desde Sá de Miranda até Jorge de Sena
E o tempo passa assim. Sou eu e o passado
Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado.

Ruy Belo
http://www.youtube.com/watch?v=FpSkj_NDkaM

domingo, 14 de agosto de 2011

Zorba


Eh, Zorba, ó grego!
Viste estrelas escarlates na valeta, rubis
cercados de azul e de amarelo. Não sei como consegues.
Cheiraste o fumo dos pinheiros e andaste por ali, a esvoaçar
na direcção do vento. E que disseste às cabras
e diabos pretos que andavam em cima das carvalhas?
Ouviste a música do sol e olhaste o céu
para que se diga, foi um milagre,
nada faltava para que a cabeça rebentasse.
Sentiste-te excitado com o canto das cigarras, fazia
calor, tanto, tanto, que o tempo corria deitado pelo chão.
Que sede, ó Zorba! Bebeste na nascente
onde há sapos e melgas e avencas
E então puseste-te a gritar. Foste
a correr pelo caminho abaixo,
abriste a pontapé a porta da cabana
e continuaste a dançar; e depois fizeste amor
e os olhos molharam-se de lágrimas.
E logo a seguir, riste à gargalhada! Eu
bem te ouvi, e nem o barulho do mar
me impediu de ouvir e ter inveja!
Diabo do homem, com asas que não cabem
numa casa, nem ao alto nem atravessado.
A estoirar de contente.

Isabel Cristina Pires
http://www.youtube.com/watch?v=2AzpHvLWFUM

sábado, 6 de agosto de 2011

A Costa Nova


A Costa Nova (com o prolongamento da Barra acoplado) é a pátria a que todos os anos regresso no verão. Mas também às vezes no outono. E também às vezes no inverno. Pátria é onde um homem (e quando um homem) quiser. Tenho de adormecer a olhar para o farol, tenho de acordar a olhar para o farol. Tenho de me embrulhar em casacos e camisolas de lã no pino do verão, porque senão nem é verão nem é nada, e a gente até pode pensar que está, sei lá!, (bater três vezes na madeira) no Algarve.
Dantes a Costa (cá em casa foi sempre uma, a Nova e mais nenhuma) tinha a ria a entrar quase até às casas da avenida. Apanhava-se o barco num pequeno ancoradouro que agora é posto de turismo, e os novatos olham e não percebem por que é que aquilo tem o feitio da proa de um moliceiro... Dantes apanhava-se aí o barco e ia-se à "bruxa", do outro lado da ria. Passávamos a tarde a beber ginjinha e a jogar matraquilhos. Houve campeonatos famosos... Depois a terra entrou pela ria dentro, e as coisas nunca mais foram o que eram.
A Costa/Barra tem o mais belo pôr do sol do mundo. A Costa/Barra tem a praia mais limpa do mundo: seja a que horas for, seja a que dia for (fins de semana incluídos) não se vê um papel na areia.
A Costa/Barra tem o melhor rodovalho do mundo. E as melhores enguias do mundo.
E sobretudo é a pátria incontestada...da tripa. Há quiosques do Zé da Tripa em todas as esquinas. (E, por favor, não confundir com bolacha americana). Há filas para comprar tripa até depois da meia noite. Há quem vá marcar lugar para amigos, há quem vá com uma lista de encomendas ("duas simples", "três com doce de ovos", "meia dúzia com chocolate") e o maralhal a aguentar até chegar a sua vez.
A Costa é a avenida com os palheiros às riscas, e nós a sonharmos passar a nossa velhice lá dentro, debruçados das janelas viradas todas para a luminosidade única da ria e o sabor distante da ginjinha, e o som dos bonecos de madeira a meterem golos na baliza do adversário.

Alice Vieira
http://www.youtube.com/watch?v=sl1RaHMfrCk

domingo, 31 de julho de 2011

Trás-os-Montes


   Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
   Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
   - Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
   Sente-se um calafrio. Vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
   Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico porque o nume invisível ordena:
   - Entre!
   A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.

   Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=twYDZj6KDYM

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O desperdício


É preciso não esquecer que a literatura, como a vida, é feita com uma grande margem de desperdício e isso não é mau. Imaginem o que seria se o mundo fosse feito de génios, obcecados com as suas obras-primas com que iriam brindar a sociedade! Que vida chata a gente teria! Eu, de escritores antigos, só me lembro de ter tido verdadeiro prazer a ler o Fernão Mendes Pinto. Toda a complexidade da condição humana, aquele deslumbramento pelo diferente, que normalmente nos aterroriza, tem na sua escrita qualquer coisa de exemplar que me leva, não sei se abusivamente, a atribuir ao português ou pelo menos ao português pobre, esta facilidade de se fascinar com o outro. Mesmo nas colónias não tivemos colonizadores. Tivemos imigrantes. Gostaria de reflectir um dia sobre esse fenómeno bem português de sairmos daqui por causa da pobreza. Tal qual os imigrantes que conheci. Creio mesmo que o próprio racismo é cultural mas isso fica para depois. É isso: temos que contar com o desperdício e creio que uma parte da beleza da vida é feita por essas manifestações de "desperdício" que nos trazem muitas horas boas. De resto, o "desperdício" é essencial à manutenção do sistema. Já tenho contado a história das formigas: não sei se sabem que, num formigueiro. oito de cada dez formigas não fazem nada, só atrapalham. No entanto, são elas que asseguram a sobrevivência do sistema. Se todas tivessem uma função, a gente pisava um formigueiro e o sistema entrava imediatamente em ruptura(...)
As sociedades que estamos a construir, com esta necessidade essencial de termos uma função dentro delas, enfiam-nos numa comunidade chata e invisível e é isso que dá lugar às grandes exclusões sociais. Quem está integrado no sistema se, por azares da vida sai dele, dificilmente terá possibilidades de reintegração. Temos que prever o ócio, que é uma forma de desperdício, se queremos sobreviver como espécie. Quando vou a África, ao lado daquelas guerras todas em que os meteram aqueles organizaram assim o mundo, fico encantado com aquela capacidade de preguiça ostensiva. Dá-me uma sensação de bem-estar que não encontro por essa Europa fora onde as pessoas já trazem na cara a ansiedade e a angústia de quem não pode parar.

António Alçada Baptista
http://www.youtube.com/watch?v=Gm9T5EQOxDE&feature=relmfu

sábado, 2 de julho de 2011

O encontro


Por vezes, sem qualquer esforço, sou uma atmosfera ou identifico-me com um arvoredo, com a sua cor sombria, cor de veludo e silêncio, cor de estar ou ser, intemporal e densa. Eis onde vivo por momentos. Onde sou uma respiração do silêncio. Ou então uma encosta. Umas quantas janelas onde já ninguém vem assomar-se. Uma faixa oblíqua de cor ensimesmada no abandono de uma tristeza que é um gesto da imobilidade. Alongado, profundo, externo gosto de ser e nada mais. Estar ou ser no encontro tornou-se a exactidão pura de uma densidade tranquila e suficiente, internamente imensa. Contemplação intensa e calma, como liberta do desejo, e todavia a forma e o fundo do desejo como substância única, salva numa completa tranquilidade. Neste muro  inabitável, por abandonado e solitário, está a mais viva e a mais sossegada habitabilidade do mundo. Sinto a vibração aérea do imperecível e todavia efémero. Sou agora, abandonando-me, o próprio encontro com o que não responde e que responde no silêncio do inanimado. Horizontal, vertical, estou reunido como uma pedra e não me afundo, não soçobro entre a sombra e a água.

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=t4kiQzKGhk0

domingo, 26 de junho de 2011

As ilhas


As ilhas parecem-me sempre umas saias de mulher a boiar na água, bordadas de rochedos e vegetação. É uma coisa tola de se pensar, mas são lugares femininos que podiam ter por baixo pernas bonitas, tonificadas, a porem tudo a navegar. Lugares robustos, corajosos, capazes de fazer vida longe de tudo, deitados à solidão como se quisessem ficar sossegados, sem ninguém que os chateie. As ilhas parecem-me sempre saias de mulheres deitadas à água, e os seus habitantes são como meninos trepando pelas mães acima, segurando-se como só pelas mães nos sentimos seguros(...)
Não pensem que levaria as ilhas para a beirinha do continente, nada disso. Se lhes pudesse pegar, ia pô-las sempre para diante, ao centro do mar, para serem ainda mais mágicas e ficarem ali a sonhar terem mesmo cabeça e pernas e se levantarem como senhoras tremendas, um dia, em surpresa.
Era lindo que as ilhas um dia se levantassem de pernas longas e deitassem cabeça, abrissem olhos e vissem a imensidão. O que nos diriam, ao reparar nas suas saias, por tanta gente a rabiar?
Lembro-me dos girinos que rabiavam nas poças de água do nosso quintal. Guardava-os numa pedra escavada onde nasciam umas ervas molhadas e os via nadar. Era uma maravilha ver como passavam de uma colher mole para um sapinho pequeno que se punha a saltar e me fugia da pedra escavada que me parecia um lugar tão arranjadinho para se viver (...) De modo a nunca mais me fugirem, pensava eu, havia de viver numa ilha pequena para onde tivessem de voltar quando quisessem pôr o pé em terra segura. Imaginava-me no cimo de uma pedra no meio do mar, e os sapinhos indo a banhos e voltando para me fazerem companhia.

valter hugo mãe
http://www.youtube.com/watch?v=YEftoCmhojE

sábado, 18 de junho de 2011

Soneto


Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe - e um alto monte
Aonde se abra à luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! é largo, imenso, esse horizonte...
Não, não se fecha o Mundo! e além, defronte,
E em toda a parte, há luz, vida e carinho!

Avante! os mortos ficarão sepultos...
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus...
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio dele houver mais luz!

Antero de Quental
 http://www.youtube.com/watch?v=QqecepvxVrc&feature=related

sábado, 11 de junho de 2011

A cidade de Ulisses


   Caminhei no passeio, à beira rio, onde uma bicicleta rodava devagar sobre o poema "o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia". As rodas giravam, no chão alcatroado, sobre uma palavra e outra, primeiro devagar e depois cada vez mais depressa, eu ouvia o som da roda girando sobre as palavras ainda legíveis, depois as letras começariam a deslizar e a confundir-se, até se converterem num borrão indistinto.
   A escrita como imagem, o legível e o ilegível como verso e reverso de uma imagem num espelho, as palavras reflectidas ou projectadas sobre a água,
   o asfalto do cais transformando-se em água, as palavras transformando-se em rio, as palavras "Pelo Tejo vai-se para o Mundo" ondulando sobre um rio, depois sem transição correndo sobre o mar, porque agora a água ondula, cavada, torna-se de um azul profundo, enquanto as letras brancas escurecem até ficarem negras, começam a desfazer-se na água e deixam de ser legíveis.

   Tinha já prontas várias telas, trabalhava nas últimas duas.
   Do projecto inicial ficariam apenas vestígios, no nome da exposição ("A cidade de Ulisses, Exposição de Paulo Vaz, a partir de um projecto de Cecília Branco"), e também o mote em que tínhamos pensado anos atrás:
   "Os turistas fogem em geral de si mesmos e procuram, obviamente, as cidades reais. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares e preferem as cidades imaginadas. Com sorte conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida."

Teolinda Gersão

terça-feira, 31 de maio de 2011

ao tempo que isto foi


Páscoa
A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come

quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto

minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada
eu venho do pátio
certamente cantando

o tio - as urinas presas
no laço da bexiga -
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto
como ele Manuel sorte infeliz

ao tempo que isto foi

Fernando Assis Pacheco
http://www.youtube.com/watch?v=bG5nsvrP5l4