domingo, 29 de setembro de 2019
O sol
o sol,
a poeira
lentíssima do sul
a pedra do ar
clara e mordida,
a branca e nua
e tão antiga
poeira do sol,
vem poisar-me
nos olhos.
Ainda.
Eugénio de Andrade
Desenho de Álvaro Siza
https://www.youtube.com/watch?v=F0NvAjKGy6A
sábado, 21 de setembro de 2019
A casa do mar
Dentro de casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada.
À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira.
No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persianas. E, quando as vidraças estão abertas, o perfume seco das dunas mistura-se com o perfume das maçãs.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Desenho de Júlio Reis Pereira
https://www.youtube.com/watch?v=OoVjz14Rx98
Desenho de Júlio Reis Pereira
https://www.youtube.com/watch?v=OoVjz14Rx98
domingo, 15 de setembro de 2019
Saúdo o que não conheço
o inominável obscuro
com palavras da mais pura incoerência
ou que desejariam sê-lo e são ainda a trama demasiado consistente
por onde passa o fulgor verde da matéria submersa
Ah nós vivemos e morremos sem conhecer
a glória da identidade intangível
na sua secreta continuidade sob o manto do olvido!
Procuramos uma abertura para o bosque interior
e tentamos abrir o diafragma levemente
para que a transparente rosa da transpiração floresça
Em cada hausto procuramos a unidade pura
em que o nosso hálito se confundiria com o sopro cósmico
como uma constelação à plácida baía das águas superiores
António Ramos Rosa
Pintura: "Fábula" de El Greco
https://www.youtube.com/watch?v=8daGqy3Jles
sábado, 7 de setembro de 2019
Plaza de Cólon
Plaza de Cólon com a estátua de Cristóvão Colombo
Plaza de Cólon, Monumento a Colombo
Madrid, 4 de Dezembro de 1892
Cristóvão Colombo, marítimo, casado em Lisboa na freguesia de Santos, hóspede do Sr. Agostinho de Ornelas na ilha da Madeira, sócio da Sociedade de Geografia, sucedeu-lhe um dia descobrir a América, e assim principou a festa.
Por esse eufemismo "descobriu a América", se deve entender unicamente que o que ele fez foi ir lá. Enquanto a descobri-la, a verdade é que a América nunca esteve - como por exemplo a nossa ameixa de Elvas - coberta. Pela regra por que Cristóvão Colombo a descobriu, também o primeiro americano que veio à Europa descobriu a Europa, e não há ninguém que na sua classe, mais ou menos, não tenha descoberto alguma coisa... não azedemos, porém, o debate com reivindicações pungentes, posto que justificadas, e narremos com serenidade os acontecimentos.
Com o pretexto de que ele a descobriu, fez-se-lhe um centenário. Bosch, o malogrado alcaide, gizou as festas.
Forasteiros vieram. Hotéis subiram preços. Chuva caía. Grupos de provincianos, de gorra encarnada e medalha ao peito, passavam tossindo por baixo de gotejantes chapéus de chuva, e eram os órfãos. Lamentáveis estudiantinas em traje escolar do século XVll, colher de pau no chapéu de dois bicos, tacões tortos pateando o lamaçal, eram a mocidade estudiosa. Perante Bosch, constituído em júri de exame, pilhos em folga e mendigos em vilegiatura prorrompiam em saltos de tigre e em uivos de chacal, para o fim de serem contratados como feras do mato virgem na cavalgada histórica...
Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=g1TFPPL6JRY
Com o pretexto de que ele a descobriu, fez-se-lhe um centenário. Bosch, o malogrado alcaide, gizou as festas.
Forasteiros vieram. Hotéis subiram preços. Chuva caía. Grupos de provincianos, de gorra encarnada e medalha ao peito, passavam tossindo por baixo de gotejantes chapéus de chuva, e eram os órfãos. Lamentáveis estudiantinas em traje escolar do século XVll, colher de pau no chapéu de dois bicos, tacões tortos pateando o lamaçal, eram a mocidade estudiosa. Perante Bosch, constituído em júri de exame, pilhos em folga e mendigos em vilegiatura prorrompiam em saltos de tigre e em uivos de chacal, para o fim de serem contratados como feras do mato virgem na cavalgada histórica...
Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=g1TFPPL6JRY
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
Museu do Prado
24 de Maio de 1881
Enquanto Madrid tiver o seu Museu e o deixar ver aos estrangeiros, os estrangeiros não terão direito de pedir nenhuma outra coisa a Madrid.
Que importa a má cozinha de pimentão, de azeite e de alho, que tão negras fomes fez passar a Dumas quando ele cá veio?
Que importa a ventania agreste, que representa aqui o papel da brisa, e da qual dizia Théophile Gautier que ela faz voar pelos ares não só os chapéus dos homens, mas os próprios cornos dos bois?
Que importa a melancólica e mísera exiguidade desse pobre rio Manzanares, que a municipalidade deveria ter o cuidado de mandar regar às tardes por causa do pó?...
Entrar no Museu de Madrid é na arte um facto tão importante, como é na religião o entrar no Santo Sepulcro Sepulcro em Jerusálem.
Tenho-me por insuspeito. Não sou a respeito de coisa nenhuma o que se chama em absoluto um crente.
A pintura antiga é-me em geral antipática: em primeiro lugar, porque é antiga, o que é meio caminho andado para ser morta; e em segundo lugar, porque é respeitada. Desde que um artista principia a infundir nas turbas o respeito, ele está acabado como artista, e é apenas um manipanso.
Oh! como eu fui feliz a primeira vez que vi o divino Rafael, em o achar sinceramente, cordialmente, do fundo da minha alma, um belo e sublime sensaborão!
Mas no Museu de Madrid há alguma coisa excepcional e única, tanto na arte antiga como na moderna.
Há Velasquez e há Goya.
Goya é o pintor da força, e Velasquez é o pintor da vida.
Goya representa na pintura a mais mordente expressão que pode assumir o sarcasmo, a mais explosiva forma que pode tomar o rancor e o ódio. A sua tinta insulta, infama e dissolve. Os seus pincéis açoitam como azorragues, lanham a pele, dilaceram as carnes. Nos ingredientes da sua factura entram as pedras preciosas e a lama infecta das ruas, a pulverização das pérolas moídas e a pólvora, o orvalho e o vitríolo.
Goya é na arte o precursor do niilismo social.
Velasquez é de per si só toda uma escola, todo um museu. A sua obra prodigiosa é a história inteira de um século.
O largo ralo da sua visão abrange a vida em todas as suas manifestações, e fixa para a imortalidade todos os tipos preponderantes da sociedade do seu tempo, os tipos da corte e os da igreja, os tipos da rua e os da taverna, a nobreza e a vilanagem, o paraíso e o bordel. Galeria assombrosa de Reis e de histriões, de padres e de saltimbancos, de virgens e de cortesãs, de operárias e de princesas, de sábios e de comediantes, de heróis e de anões, de santos e de bêbados, de deuses e de mendigos, de cortesãos e de cínicos, de bobos e de mártires!
Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=ydIC7D2oo7o
Entrar no Museu de Madrid é na arte um facto tão importante, como é na religião o entrar no Santo Sepulcro Sepulcro em Jerusálem.
Tenho-me por insuspeito. Não sou a respeito de coisa nenhuma o que se chama em absoluto um crente.
A pintura antiga é-me em geral antipática: em primeiro lugar, porque é antiga, o que é meio caminho andado para ser morta; e em segundo lugar, porque é respeitada. Desde que um artista principia a infundir nas turbas o respeito, ele está acabado como artista, e é apenas um manipanso.
Oh! como eu fui feliz a primeira vez que vi o divino Rafael, em o achar sinceramente, cordialmente, do fundo da minha alma, um belo e sublime sensaborão!
Mas no Museu de Madrid há alguma coisa excepcional e única, tanto na arte antiga como na moderna.
Há Velasquez e há Goya.
Goya é o pintor da força, e Velasquez é o pintor da vida.
Pinturas de Goya
Goya representa na pintura a mais mordente expressão que pode assumir o sarcasmo, a mais explosiva forma que pode tomar o rancor e o ódio. A sua tinta insulta, infama e dissolve. Os seus pincéis açoitam como azorragues, lanham a pele, dilaceram as carnes. Nos ingredientes da sua factura entram as pedras preciosas e a lama infecta das ruas, a pulverização das pérolas moídas e a pólvora, o orvalho e o vitríolo.
Goya é na arte o precursor do niilismo social.
Pinturas de Velasquez
O largo ralo da sua visão abrange a vida em todas as suas manifestações, e fixa para a imortalidade todos os tipos preponderantes da sociedade do seu tempo, os tipos da corte e os da igreja, os tipos da rua e os da taverna, a nobreza e a vilanagem, o paraíso e o bordel. Galeria assombrosa de Reis e de histriões, de padres e de saltimbancos, de virgens e de cortesãs, de operárias e de princesas, de sábios e de comediantes, de heróis e de anões, de santos e de bêbados, de deuses e de mendigos, de cortesãos e de cínicos, de bobos e de mártires!
Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=ydIC7D2oo7o
Madrid
24 de Maio de 1881
Às seis da manhã, à chegada do comboio de Portugal à estação das Delícias, Madrid está ainda adormecida.
Uma carruagem de praça conduz-me com a minha bagagem através do Prado, onde estão fechadas todas as barracas da feira de Santo Isidro. Ao longo da calle de Alcalá, larga como um boulevard de Paris, os prédios, de estreitos balcões, revestidos de persianas, segundo a moderna arquitectura francesa, não dão o mínimo sinal de vida.
Subo ao quarto que me estava reservado no Grand Hotel de la Paix.
A praça da Puerta del Sol, sobre a qual se abrem as minhas janelas, está quase inteiramente deserta.
O grande repuxo do centro do largo chapinha na sua taça com estrépito vivaz e ribombante. Uma sentinela em grande uniforme está postada em frente à porta do palácio da Gobernación. Moços em mangas de camisa abrem as portas e espanam as vitrinas das lojas. Criadas de cabelos lustrosos, escrupulosamente penteadas, o pequeno chaile de ramagens cruzado no peito, com o cesto das compras de listras azuis e encarnadas enfiado no braço, dirigem-se ao mercado em curtas passadas elegantes e espertas. Vão-se abrindo a pouco e pouco, com olhos de sono, as janelas das casas...
Visto-me à pressa e vou para a rua.
Madrid tem tido grandes desenvolvimentos materiais desde que o vi pela última vez há doze anos.
As novas ruas do bairro de Salamanca são espaçosas e alegres. Os prédios têm construção elegante. A grande maioria das praças estão ajardinadas, e a água corre abundantemente por toda a parte.
Mas o novo Madrid perde de dia para dia a sua feição espanhola, infiltrada pelas influências do gosto e da arte francesa.
A bela e característica arquitectura hispano-árabe, tão notável nas edificações de Sevilha, de Córdoba e de Granada, tende a desaparecer completamente da Vila Coronada.
Na Puerta del Sol e na Calle de Alcalá não se sente mais que um reflexo do chic parisiense de exportação e de segunda mão.
Dos Pirinéus para cá prefiro a esse chic o simples salero.
Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=5D2mPeBoJHs
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