sábado, 21 de setembro de 2019

A casa do mar


Dentro de casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. 
À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira.
No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persianas. E, quando as vidraças estão abertas, o perfume seco das dunas mistura-se com o perfume das maçãs.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Desenho de Júlio Reis Pereira
https://www.youtube.com/watch?v=OoVjz14Rx98

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