segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Rumor de água




Rumor de água

na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância

minha pureza refractada.

A ribeira secou no verão

Rumor de água

no tempo e no coração.

Rumor de nada.


Carlos de Oliveira

Arte de Paula Rego

https://www.youtube.com/watch?v=HUf0zoG-3mo

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ainda assim eu me levanto


“Still I Rise”

Você pode me inscrever na História
Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó
Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.
Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo
Jorrando em minha sala de estar.
Assim como lua e o sol,
Com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas
Com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!

Maya Angelou
Ilustração de Jean-Michel Basquiat

sábado, 27 de novembro de 2021

Manguezal

Nos mangues do Lobito durante a maré baixa

caminhávamos horas ao longo dos ramais

indiferentes ao solo instável

ao labirinto de raízes, às aéreas transições


Ficávamos assim talvez mais próximos

da verdade sem aquela sensação

de que a haveríamos de perder

e quando atravessávamos a fronteira das águas

galhofeiros e urrando de entusiasmo

parecia-nos estranho que houvesse apenas uma palavra

para designar o mundo


Nenhuma ignomínia ou veneno

trepava os muros desses domínios

a nossa existência era uma coisa selvagem e simples

sentindo-se maravilhosamente


Só quando surpreendíamos os flamingos

prontos para os seus voos

semelhantes a uma armada

de invisíveis jangadas

compreendíamos ser testemunhas de um segredo

que não estava destinado ao olhar dos homens


José Tolentino Mendonça

Foto de manguezal, Lobito, Angola

https://www.youtube.com/watch?v=G2jSbjI9Ll4

sábado, 20 de novembro de 2021

Paisagem

O tempo passou, transformou tudo em gelo.

Sob o gelo, o futuro bulia.

Se caísses lá dentro, morrias.

 

Era um tempo

de espera, de acção suspensa.

 

Eu vivia no presente, que era

a parte do futuro que podíamos ver.

O passado pairava sobre a minha cabeça,

como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

 

Era um tempo

governado por contradições, como

Não sentia nada e

tinha medo.

 

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.

Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.

Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;

o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

 

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.

E outra parte evaporou-se simplesmente;

podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,

formava partículas de gelo.

 

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.

Depois o momento oportuno

revela-se acção consumada.

 

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar

da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,

consoante o vento. Por vezes

 

não havia vento. As nuvens pareciam

ficar onde estavam,

como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

 

Por vezes o lago era um lençol de vidro.

Sob o vidro, o futuro murmurava,

modesto, convidativo:

tinhas de te concentrar para o não ouvires.

 

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.

Os anos que levou eram anos de inverno;

ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

 

não havia nuvens, como se

as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

 

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o

de lado a lado. Depois

a imagem apagava-se.

 

Por cima do mundo

só havia azul, azul em toda a parte.

 

Louise Glück (tradução de Rui Pires Cabral)

Pintura de Van Gogh

https://www.youtube.com/watch?v=xnHEQhno7Y8


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Figuras



A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

Fernando Echevarria
Arte de Armanda Passos

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Palheiros de Mira


Tudo aqui é pobre e humilde mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham os pescadores não fazem mais nada - deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha.
Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu. É construída sobre espeques na areia, com tábuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais qua a vida; cheiram que consolam, quando novas,  a resina, a árvore descascada e a monte; ressoam como um velho búzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinária, e quando se abre um a janela, abre-se para o infinito...

Raúl Brandão
Foto de Agosto de 1975


sábado, 23 de outubro de 2021

Gândara

I

Sem uma ruga de vento.

Sol e marasmo.

Silêncio feito de troncos

e de pasmo.


Campos, pinheiros e campos

quietos. Tanto,

o sol parado

encheu-me os olhos de espanto.


III

Já nem as aves cantam pela maré cheia

da tarde.

À flor da areia

só o silêncio arde.


V

Sol e vento,

lábios de maresia

na lagoa a coalhar,

onda sobre onda,

mar e dia.


Carlos de Oliveira

Foto de Renato Roque

https://www.youtube.com/watch?v=_Nbq16mXRc0

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A conquista de Cacela


As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas 
As cidades do mar pela riqueza 

Porém Cacela 
Foi desejada só pela beleza

Sophia de Mello Breyner Andresen



Ó vila de Olhão



Ó vila de Olhão
Da Restauração
Madrinha do povo
Madrasta é que não

Com papas e bolos
Engana o burlão
Os que de lá são
E os que pra lá vão
E os que pra lá vão
E os que pra lá vão

Ó flor da trapeira
Ó rosa em botão
Tuas cantaneiras
Bem bonitas são

Larga ó pescador
O que tens na mão
Que o peixe que levas
É do teu patrão
É do teu patrão
É do teu patrão

Limpa o teu suor
No camisolão
Que o peixe que levas
É do cais do Olhão

Vem o mandarim
Vem o capitão
Paga o pagador
Não paga o ladrão
Não paga o ladrão
Não paga o ladrão
Ó vila de Olhão
Da Restauração
Madrinha do povo
Madrasta é que não(...)


Zeca Afonso











Ria Formosa


Nasci na Ria Formosa
Sou filha deste sapal
neta da moura de Bias
Sou de Floripes rival
nesta ria fui nascida num dia de claridade
na luz do sol ao meio dia
Em Agosto sou a acalmia 
Sou o vento beduíno
o velho o moço o menino
que há em cada pescador 
Sou o desgosto e a dor
Vela ao senhor dos aflitos
Sou mãe de todos os gritos Padroeira do pavor
que assalta quem é perdido
e de quem teme perder o irmão o pai o marido
Sou a santa no andor em dia de procissão
Sou a rameira de Olhão -Apelido que a inveja
das puritanas me deu-
Pois da braveza do mar
da escalmorrice da vida me veio a pele sertaneja
e o sangue a ferver no corpo que todo o homem deseja
Sou filha da luz da lua
gerada na noite escura numa cópula sem rosto
Sou filha dos homens todos
e de todas as mulheres 
Irmã de todas as vagas
Sou amiga das diabas
Sou amante dos diabos e dos ventos desgarrados
atiçados a sueste
que se lançam contra a duna
Sou vulgar e importuna Rainha dos meus humores
no castelo aonde abrigo os corpos dos pescadores
que a maré por devaneio resolve levar consigo
Olho o esteio de cada barco que entra e sai aquela barra
por onde eu saía à garra para depois na enchente
ser levada na corrente
e aos beijos e abraços entrar de novo à deriva
neste berço
nesta ria
que me viu nascer poeta para em meus versos ou prosa
cantar até rebentar este braçado de mar
a que chamaram Formosa.

Julieta Lima


A Ilha da Culatra 




A Ilha do Farol



De manhã

De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
refletisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a indicar
o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.

Nuno Júdice, natural de Portimão

A Rua


A rua era de terra e casas térreas
ladeavam-na, talvez desde os anos trinta
Para ali tinha sido transplantada
a minha infância, a linha

do comboio passava entre o largo e a ria,
de noite sobretudo parecia-me
ameaçador e imenso o largo, ao fim
da rua com janelas onde assomavam caras

conhecidas, na luz ténue que vinha
das esquinas; quartel e em outubro a feira,
à igreja adjacente um convento, nocturnos pios
de mochos emitido; no coro da igreja

quem leria para o lugar vazio? a alguém ouvia,
sem entender, correr a poesia
essa voz assustava como vinda
de sepulcro onde o eco a transformava;

e contava-me o som sublime quem o
escutara quando a igreja limpava

Gastão Cruz, natural de Faro

Sou daqui

Bichos somos de um certo chão
o único
em que nossos passos encontram seu verdadeiro
sítio e som e ritmo
e nossos sentidos desabrocham
suas mais íntimas pétalas.
Sou daqui. Só aqui pertenço
aos três reinos da Natureza simultaneamente. Sei que
fomos originariamente pó de estrelas
mas só as estrelas algarvias me reconhecem:
piscam-me o olho e pestanejam com fulgor.
Sou filha do casamento da terra com o mar.
Meus olhos não sabem viver sem uma paisagem de água
e meu corpo precisa de assentar neste chão
de aqui vir
ritualmente acertar-se com esse sopro interior a que
chamamos alma.
No exílio reinventei com palavras
todos os sítios em que nasci e cresci
e agora são mais meus
porque assim os dei de novo à luz(...)

Teresa Rita Lopes, natural de Faro

Regresso ao chão da infância

Subitamente regresso ao chão
da infância, à velha casa
na serra deitada. Essa casa
que todos os dias
abre a sua brancura
aos braços do sol, ao céu
para sempre azul. E parece o mesmo
esse velho céu que tanto
interroguei. Todos os dias
regresso ao chão da primeira
fala. A sombra da azinheira
que tantas vezes abracei
acolhe-me de novo nos seus braços
cansados. Terá reconhecido o menino
que sorri ainda
ao seu chão mais antigo?

Casimiro de Brito, natural de Loulé

Meu Algarve



Meu Algarve encantador,

P´ra o poeta e p´ra o pintor
Tens motivos de sobejo…
Até eu, se tivesse arte,
Queria ao mundo mostrar-te
Como te sinto e te vejo.

Meu Algarve encantador,
A par da tua alegria,
Tens o encanto, a magia,
Das amendoeiras em flor.

Meu qu´rido Algarve em Janeiro,
Ao turista endinheirado,
escondes o corpo ulcerado
no fatinho domingueiro.

Só vêem flores os olhos
Desses ilustres senhores
Mas no Algarve, os abrolhos
São muito mais do que as flores.

Mas quem, como eu, o conhece,
Sabe que ele infelizmente
Por dentro é muito diferente
Do que por fora parece.

António Aleixo

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Corredor

Era ao sair da infância, eu não sabia

seguir o risco ao meio entre uma porta

e outra vida, repetir os passos à luz 

apagada, aprender a domar a constância

de sofrer e a falta de opção de crescer;


se é desconjunta a formosura apascentada

na cabeça, recusa clemência a curta estatura.

Vem por acréscimo a conquista da casa

quando se domina o vernáculo do lugar


o ar do tempo: manual para se estar a cagar,

luta de classes, pornografia q.b.

e outras prospecções e sortilégios

que só a mim afectam e confrangem.

Corpo indiscorrível, labirinto de alçapões.


Margarida Vale de Gato

Auto-retrato de Aurélia de Sousa (18866-1922)

https://www.youtube.com/watch?v=ZH4rvP4WgZY

sábado, 4 de setembro de 2021

Thomar

Quando o viajante acorda, vai abrir a janela do quarto. Quer sentir a frescura das árvores do Mouchão, os altos choupos, as faias de folhas verde-brancas. Quem transformou o areal que isto era no século passado devia ganhar também uma medalha. O viajante, como se observa, dispõe-se a condecorar toda a gente que o mereça.
O convento está lá no alto, há que ir vê-lo. Mas o viajante reserva a primeira atenção do dia para o minucioso exame desta roda de rega, tão ao alcance que já distraidamente a olha quem por aqui passa, talvez julgando-a, se é visitante de ocasião, forma só decorativa ou brinquedo de crianças, por cautela posto fora de uso. Como trabalho de carpintaria é das mais perfeitas máquinas que tem visto. Chamam-lhe roda de mouros, o que é costume na nossa terra quando de outra maneira se não sabem explicar as coisas, mas é de concepção romana segundo afirmam os entendidos. O que o viajante não sabe é quando foi construída, mas tem relutância em acreditar que esta roda seja roda desde o século IV ou V (...)

José Saramago
















Cá está o pórtico de João Castilho, uma das mais magníficas realizações plásticas que em Portugal foram cometidas. Em rigor, uma escultura, esta porta ou uma simples imagem, não pode ser explicada por palavras. Não basta sequer olhar, uma vez que os olhos também têm de aprender a ler as formas. Nada é traduzível noutra coisa. Um soneto de Camões não pode ser passado à pedra. Diante deste pórtico não há mais do que ver, identificar os diversos elementos no campo dos conhecimentos de que se dispõe, indagar para suprir o que falta, mas isto será trabalho de cada viajante, não de um que veja por todos e a todos explique.

José Saramago



Tomar Umbilicus Telluris, Centro do Mundo?
Se eu conseguia imaginar um castelo templário, assim era Tomar. 
Sobe-se por uma escada fortificada que bordeja os bastiões exteriores, de seteiras em forma de cruz, e respira-se uma atmosfera cruzada desde o primeiro instante. Os Cavaleiros de Cristo tinham prosperado durante séculos naquele lugar: a tradição pretende que tanto o infante D. Henrique como Cristóvão Colombo eram dos deles, e com efeito haviam-se dedicado à conquista dos mares - fazendo a riqueza de Portugal. A longa e feliz existência de que aí tinham gozado fez com que o castelo tenha sido reconstituído e ampliado em diferentes séculos, pelo que à sua parte medieval se acrescentaram alas renascentistas e barrocas. Comovi-me ao entrar na igreja dos Templários, com a sua rotunda octogonal que reproduz a do Santo Sepulcro.
Depois o nosso guia levou-nos a ver a janela manuelina, a janela por excelência, uma passagem, uma colagem de achados marinhos e submarinos, algas, conchas, âncoras, amarras e correntes, em celebração dos fastos dos Cavaleiros. Mas dos dois lados da janela, a encerrar como que dentro de uma muralha as duas torres que a enquadravam, viam-se esculpidas as insígnias da Jarreteira. O que estava a fazer o símbolo de uma ordem inglesa naquele  naquele mosteiro fortificado português? O guia não o soube dizer, mas pouco depois, de outro lado, creio que de noroeste, mostrou-nos as insígnias do Tosão de Ouro. Eu não podia deixar de pensar no subtil jogo de alianças que ligava a Jarreteira ao Tosão de Ouro, este aos Argonautas, os Argonautas ao Graal, e o Graal aos Templários.
Parti de Tomar e de Portugal com a mente em chamas. Estava a levar finalmente a sério a mensagem que Ardenti nos exibira. Os Templários, constituídos em ordem secreta, elaboram um plano que deve durar seiscentos anos e concluir-se no nosso século. Os Templários eram pessoas sérias. Portanto se falavam de um castelo, falavam de um lugar verdadeiro. O plano partia de Tomar.

Umberto Eco











   O ENCOBERTO

Que símbolo fecundo

Vem na aurora ansiosa?

Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino

Traz o dia já visto?

Na Cruz, que é o Destino,

A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final

Mostra o sol já desperto?

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.


Fernando Pessoa "A Mensagem"


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Águeda

 CORREIO

Chegam cartas. Chegam pedaços 
do meu país.
Chegam vozes. Chega um silêncio que me diz
as revoltas as lágrimas os cansaços.
Chegam palavras que me apertam os braços.
Chegam notícias do meu país.

Chega o José o Alípio o Manel a Toina
Chegam do Sul e falam a cantar
chegam do Norte e trocam os bês pelos vês
chegam mulheres descalças e homens de boina
chegam os antigos senhores do mar.
Chega gente que chora em português.

Chegam palavras como sinos a tocar:
Há fogo em Sintra. Greve no Barreiro.
E chegam de Águeda palavras de há vinte anos:
Mataram no Gravanço o filho do moleiro.
E o Ti Fausto a dizer: Se ainda houvesse republicanos...
palavras de Águeda com os sinos a dobrar
pelo Ti Fausto que já morreu que já morreu.

E há o Eugénio a tocar a Marselhesa
ao piano das palavras que o tempo me traz.
Chegam notícias de mim mesmo de há vinte anos:
O Manel gosta da Maria do Brás.
Ti Fausto Eugénio Vó Clementina
onde é que estão onde é que estão os republicanos
e a Maria do Brás que ficou sempre menina
dentro de mim em Águeda há vinte anos?

Manuel Alegre
ÁGUEDA AGOSTO DE 2021












terça-feira, 17 de agosto de 2021

A Pateira de Fermentelos

 A Pateira de Fermentelos é uma lagoa natural, localizada no triângulo Águeda, Aveiro, Oliveira do Bairro, antes da confluência do Rio Cértima com o Rio Águeda, pertencendo na sua parte Sul ao concelho de Águeda (freguesias de Ois da Ribeira, Espinhel e Fermentelos).
Considerada uma zona húmida de elevada riqueza ecológica, a Pateira de Fermentelos desde cedo se tornou um sistema em que as actividades humanas se integravam perfeitamente na sua dinâmica, permitindo assim a manutenção da lagoa. A prática de uma agricultura drenante e a recolha constante do moliço (para posterior utilização como adubo natural), permitiu a manutenção de uma significativa superfície livre de água e impediu o avanço do pântano. Este equilíbrio, entre a actividade agrícola e a recolha do moliço, conduziu a uma paisagem humanizada de elevada organização e diversidade, na qual a lagoa atingia a sua maior dimensão.
No entanto, as alterações económicas e sociais operadas por volta dos anos 60, reduziram progressivamente a prática de recolha do moliço, permitindo assim o seu livre desenvolvimento. Este processo foi ainda grandemente acelerado pela descarga de esgotos, efluentes orgânicos e industriais e drenagem dos terrenos agrícolas envolventes.

in Jornal das Autarquias




Ao Canto do Lume


Que ilusão, viajar! Todo o Planeta é zero.

Por toda a parte é mau o Homem e bom o Céu.

- Américas! Japão! Índias; Calvário!... Quero

Mas é ir à Ilha orar sobre a cova de Antero

E a Águeda beber água do Botaréu....


António Nobre

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Egas Moniz

 Férias em Avanca

Quando íamos a férias, eu, meu irmão e a Lucianinha que sempre vinha, no Verão, do Convento de Arouca, fazíamos a vida impossível a nossos pais e especialmente à nossa mãe, sempre solícita em nos aturar. Minha irmã já gostava de bordar e costurar, místeres em que com ela se entendia. Os rapazes gostavam da vida ao ar livre, da caça aos passarinhos, da busca de ninhos e das brigas na relva do quintal, espécie de luta romana que improvisávamos. Às vezes acabava menos amigavelmente. Pequenas nuvens que não chegavam a projectar sombras.
Havia uma ambição da nossa vida de garotos: o rio! Passava ao fundo da pequena quinta um riacho tentador. Estávamos proibidos de ir sós para lá. O ribeiro tinha uns lugares mais fundos e meus pais receavam qualquer desastre. Mas era uma tentação irresistível! Logo de manhã, da janela do nosso quarto, víamos os salgueiros e amieiros, que bordavam as margens a chamarem-nos em movimentos rumorejantes. O desejo de transgredir as ordens paternas aparecia como uma necessidade imperiosa, revolta que considerávamos legítima contra a opressão familiar. Apenas com pessoa de gravidade podíamos descer às margens do Gonde, - assim se chama o riacho, só imponente com as cheias - e nem sempre aparecia companhia idónea.
Quando o tio João António vinha ao Marinheiro,  então sim, era satisfeito o nosso desejo. Meu tio pescava ao anzol uns inocentes roubacos e raros barbos que, ao tempo, constituíam com esquivas enguias, a fauna ictiológica do Gonde.

Egas Moniz (1874-1955)





 



domingo, 15 de agosto de 2021

Barra de Aveiro: um Agosto

Começam a morrer os últimos pianos do século
arrefece o estio na cabeça
agora almoço e já cai o crepúsculo
esse que me fugia por aí esse tempo

o mesmo rio não se contempla duas vezes no rosto do homem
debruçado fumando no molhe do marégrafo
a mesma Barra de Aveiro não é a mesma
o engenheiro Oudinot sentiria um aperto de coração idêntico

tive todas as alegrias e melancolias assim dito por alto
próprias das idades sucessivas mas nenhuma
que iludisse deveras a velha constatação jónia
cada gesto de mão é sempre um outro

nem sou sequer quem muda mas um outro

Fernando Assis Pacheco

                                         Engenheiro Reinaldo Oudinot (1744-1807)
                                                  Responsável pelo projecto da barra de Aveiro