Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.
Carlos de Oliveira
Arte de Paula Rego
Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.
Carlos de Oliveira
Arte de Paula Rego
Nos mangues do Lobito durante a maré baixa
caminhávamos horas ao longo dos ramais
indiferentes ao solo instável
ao labirinto de raízes, às aéreas transições
Ficávamos assim talvez mais próximos
da verdade sem aquela sensação
de que a haveríamos de perder
e quando atravessávamos a fronteira das águas
galhofeiros e urrando de entusiasmo
parecia-nos estranho que houvesse apenas uma palavra
para designar o mundo
Nenhuma ignomínia ou veneno
trepava os muros desses domínios
a nossa existência era uma coisa selvagem e simples
sentindo-se maravilhosamente
Só quando surpreendíamos os flamingos
prontos para os seus voos
semelhantes a uma armada
de invisíveis jangadas
compreendíamos ser testemunhas de um segredo
que não estava destinado ao olhar dos homens
José Tolentino Mendonça
Foto de manguezal, Lobito, Angola
O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.
Era um tempo
de espera, de acção suspensa.
Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.
Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.
O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.
O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.
Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.
Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes
não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.
Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.
O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes
não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo
perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.
Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.
Louise Glück (tradução de Rui Pires Cabral)
Pintura de Van Gogh
https://www.youtube.com/watch?v=xnHEQhno7Y8
I
Sem uma ruga de vento.
Sol e marasmo.
Silêncio feito de troncos
e de pasmo.
Campos, pinheiros e campos
quietos. Tanto,
o sol parado
encheu-me os olhos de espanto.
III
Já nem as aves cantam pela maré cheia
da tarde.
À flor da areia
só o silêncio arde.
V
Sol e vento,
lábios de maresia
na lagoa a coalhar,
onda sobre onda,
mar e dia.
Carlos de Oliveira
Foto de Renato Roque
Era ao sair da infância, eu não sabia
seguir o risco ao meio entre uma porta
e outra vida, repetir os passos à luz
apagada, aprender a domar a constância
de sofrer e a falta de opção de crescer;
se é desconjunta a formosura apascentada
na cabeça, recusa clemência a curta estatura.
Vem por acréscimo a conquista da casa
quando se domina o vernáculo do lugar
o ar do tempo: manual para se estar a cagar,
luta de classes, pornografia q.b.
e outras prospecções e sortilégios
que só a mim afectam e confrangem.
Corpo indiscorrível, labirinto de alçapões.
Margarida Vale de Gato
Auto-retrato de Aurélia de Sousa (18866-1922)
O ENCOBERTO
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
Fernando Pessoa "A Mensagem"
CORREIO
Que ilusão, viajar! Todo o Planeta é zero.
Por toda a parte é mau o Homem e bom o Céu.
- Américas! Japão! Índias; Calvário!... Quero
Mas é ir à Ilha orar sobre a cova de Antero
E a Águeda beber água do Botaréu....
António Nobre
Férias em Avanca
Egas Moniz (1874-1955)